Rio Morto
(Contos e Uma Novela)
Autor: João de Araújo Correia
Editora: Imprensa do Douro- Régua, 1973
"Ao fundo do meu quintal, à mão esquerda, há um miradouro ou, melhor dizendo, um coradoiro, um pedaço de terra livre de arvoredo, mas, coberto de erva macia e sempre verde. Ali coravam roupa, com maternal solicitude, as minhas rudes criadas, no tempo em que as havia e se corava roupa. Hoje, é apenas um logradoiro do meu quintal, mas, logradoiro sem utilidade. Nem sequer o aproveito como vigia do panorama que me cerca. Deixei de o visitar.
Desse retalho de terra, sempre verde, avistava eu, ao desenfado e sempre que queria, um velho amigo, um trabalhador incansável, que me viu nascer e me abandonou de um dia para o outro. Quero referir-me a um rio arcaico, milenário, que me contava uma história, cheia de pavores e doçuras, quando me via sentado, num banco de pinho, ao fundo do meu quintal.
Esse rio morreu. Deixou de ser rio para ser um lago artificial imenso, parado ou pasmado a meus pés, como cadáver que a morte dilatasse.
O dinheiro dos homens, para se multiplicar,a troco de dar luz e energia ao mundo, pega no meu rio, que era bravo e impetuoso como um toiro, e amansa-o em lago. Fez dele um boi no pasto ou uma choca no fim de uma tourada.
O meu rio, que era poeta heróico e poeta idílico, ao sabor das horas, que as contava de todos os feitios, era também artista. Com que paciência, durante séculos e séculos, não foi esculpindo, na rocha dura, maravilhas de arte… Hoje, lago empanturrado, mais rico do que um porco, já não tem força e até se envergonha de pegar no maço e no cinzel. Deixá-lo, que o progresso manda…
São do tempo do meu rio velho as efabulações constantes deste livro. Fui buscá-las à mina comum de todo escritor. Fui buscá-las em osso à infância, à juventude e aos primeiros alvores da idade adulta. Depois, para cada escritor, a mina seca. Se não houvesse passado, não havia literatura. O passado é pai e mãe do escritor.
Mas, que é que se perde com a ferrugem que o homem de letras cria ao envelhecer? Por baixo da ferrugem, há um mundo que não criou uma ruga nem um cabelo branco. O homem é sempre o mesmo.O homem, matéria prima do escritor, não varia com o feitio do mundo. Não há martelo que o falsifique.
Penso que expliquei, menos mal o título deste livro. Seria nefasto à explicação mais palavreado.
Peso da Régua, 25 de Maio de 1973
João de Araújo Correia
Li com "garra" este texto ...
ResponderEliminarSem hesitar sequer!