segunda-feira, 22 de junho de 2020

Pernas à vela







                                      A coqueteria é a poesia das mulheres
                                        
                                                                               (máxima francesa)



    In Illo Tempore, ou seja, no meu tempo de menina e moça na cidade nascida e criada, estava na moda as jovens, mais púberes ou mais espigadotas, de soquetes ou de meias de vidro, irem passar uns dias ao campo, antes ou depois de Agostos banhados por mares poveiros ou espinhenses, destinos eleitos das famílias destas nossas bandas.
    Para casa de família própria ou alheia, não iam a banhos, iam a ares. Iam ganhar cores, que a cidade dava-lhes uma palidez macilenta. Em geral eram umas lingrinhas, fastiosas, esquisitas de bico, com medo da própria sombra, meladas. Eram as mães que as empontavam, recorrendo a argumentos tão pesados como os fraguedos da serra. Iam de nariz torcido, de monco caído, de sobrolho franzido. Faziam as malas como se fossem para cidade cosmopolita porque outros vestires e calçares não tinham.
   Acabavam por se afeiçoar àquela enchente de ar puro, àqueles odores a terra molhada, a flores bem-cheirosas, àquele sabor de sopa de pote. Eram tratadas como princesas. Chamavam-lhes meninas as raparigas da mesma idade, mas de pobre trajar e  de diferente falar. De mãos gretadas e calosas,  de unhas negras de terra, de rostos tisnados de sois em muitas horas. Brancos, braços e pernas sobrantes de saias e aventais e de mangas de “blúsias”. Branco o que não se vê. Branco o que só vêem os seus homens, que na aldeia os casórios não ficavam para o tarde.

    Esta menina, com ar de já senhora, está fora do sítio. Enganou-se no cenário. Destoa no meio daquelas verduras de folhas aldeãs, sentada naquelas tábuas mal amanhadas, bem empoeiradas, de pregos enferrujados. Para onde pensa que vai com aquela altura de tacões de tango? A música ali é outra. É a do chiar  dos carros de bois e mugidos dos mesmos, é o ladrar zangado de cães engalfinhados, é o bater de roupas nos lavadouros, são todas as manifestações musicais de pássaros em alegria, os descantes de moçoilas frescalhotas, afeitas a tarefas de casa ou de campo. Para onde pensa que vai a perliquitetes com aquela roupa de missa ao domingo? Arregaçou a saia para morenar as pernas com o sol por bronzeador. Nunca tal se tinha visto por aquelas bandas - “Um desaforo, uma pouca-vergonha, isto é a fim do mundo”, murmurava o mulherio despeitado ao fazer o sinal da cruz...

    Era assim, mais ou menos. Lembro-me, a propósito desta irreverência feminina, do nome que se dava, há largas décadas, ao gesto próprio das senhoras de bem quando se sentavam. Instintivamente, em nome da moral e dos bons costumes, puxavam as saias até aos joelhos. Se fosse no tempo da mini-saia havia de ser bonito! Inspirado na designação duma certa elite humanitária em tempo salazarento, capitaneada pela Senhora Dona qualquer coisa Supico Pinto, passou a chamar-se a esse esticar de pano nas coxas  Movimento Nacional Feminino. Bem visto, sim senhor...
   

M. Herília Agarez, 22 de Junho de 2020

1 comentário:

  1. A menina já de mini saia, sem perceber ainda que estava a sair
    do seu tempo, para outros tempos que aí vinham, a quem talvez
    chamaria "tempos modernos".

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