segunda-feira, 1 de junho de 2020

Dia da Criança





As crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece. Os outros anjos, os das asas, nunca aparecem. Os santos, depois de santos, ficam na bem-aventurança a preguiçar, ninguém mais os enxerga. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as criancinhas…

                                                                                  Eça de Queiroz, A Ilustre Casa de Ramires





   Dia 1 de Junho de 2020. O primeiro da normalidade possível. Talvez seja de bom augúrio coincidir com o dia da criança. Que rima com esperança. Duas palavras nasaladamente doces, confortáveis para almas grandes de gentes grandes. As crianças  sabem o que é ser-se criança.  Criança é gente pequenina, do mamar ao gatinhar, do pedir colo ao desafiar para a brincadeira, do baloiço à bicicleta de quatro pedais. Criança cresce ao centímetro. “Pula e avança”. Ao tornar-se, triunfantemente, eréctil, depois de vários tem-tem, de breves arranhadelas inofensivas, na tenra e rosada carnação, agarra-se aos joelhos onde lhe chega a altura, que lhe são porto de segurança, pára-escorregadelas, passaporte para braços abertos.
    Quando, na manhã de hoje, dia mundial dos de amanhã, se reabriram as portas do seu mundo além muro de casa, as meninas e os meninos de um tão breve ciclo de brincar, terão feito com os pais, na véspera, revisão da matéria dada por mestres outros, de experiência feitos, de ciência informados, de mando encarregues. Como se não bastasse o treino em viver-infantil, o não-ter-com-quem-brincar, o não-poder-abraçar, o engolir-de beijos falados em linguagem de ternura, o nariz enfiado no tablet dos desenhos animados, momentos de sossego para pais exaustos, comungando  do mesmo sentimento de incompetência paternal.
    

    Este ano,  hoje é, fofinhas e fofinhos, um dia especial do resto das vossas vidas. Um dia em que nos prometeram, se nos portássemos bem, a normalidade possível. Vós entrareis pela porta da mesma escola, onde a mesma professora vos receberá a pedir-vos que deixeis os sapatos fora da sala. Encontrareis brinquedos só para vós, ficareis separados dos amiguinhos com brinquedos só para eles, dormireis a sesta em caminha que se vos manterá fiel até ao fim da arrelia. Como trazeis a lição bem estudada (compreendida não é possível), não sereis tentados a esbanjar os vossos abracinhos de saudades, os vossos beijinhos repenicados a que o confinamento retirou o sabor a frutos silvestres.
    Alguém se encarregará de vos explicar uma evidência com que estais familiarizados. Rodeia-vos (à distância, claro) gente mascarada, mas só na cara. Não tem grande graça. Pois é. O carnaval é mais fiche. Estranhastes a falta de coleginhas do peito. Ficai descansados. Eles virão. Há pais com medo por causa dos filhos, como há filhos com medo por causa dos pais. A vossa idade de terem medo vem longe. Agora aproveitai para sorrir, cantar, dançar, pular, zaragatear, fazer perrices, mijices,  dizer palavrões sem licença de entrada em vossas casas. Portastes-vos bem tempo de mais.  Venham daí essas energias, vamos lá puxar por esses músculos, por essas gargantas esganiçadas, por esses golpes de Karaté. É melhor um barulho desarrumado mas feliz do que um tudo direitinho e sossegadinho vestido de tristeza. Mas atenção: distâncias respeitadas, trocas proibidas, mãos lavadas e relavadas, senhoras acarinhadas. Recorram à vossa imaginação mímica e gestual. Verão como conseguem simular beijocas, abracinhos, fiches!, adeuses.
  
    Que esta miunçalha com o dom de acender luzes em velhices sozinhas e escuras, volte depressa a ser “um bando de pardais à solta!”.




M. Hercília Agarez, 1 de Junho de 2020

1 comentário:

  1. Está fabuloso este texto ... !! Delícias . ternas .. “ diferentes “ .. mas com o amor .. e a espontaneidade , sempre presentes ... GOSTEI IMENSO .. !!!

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