As crianças são os únicos seres divinos que a nossa
pobre humanidade conhece. Os outros anjos, os das asas, nunca aparecem. Os
santos, depois de santos, ficam na bem-aventurança a preguiçar, ninguém mais os
enxerga. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as
criancinhas…
Eça
de Queiroz, A Ilustre Casa de Ramires
Dia 1 de
Junho de 2020. O primeiro da normalidade possível. Talvez seja de bom augúrio
coincidir com o dia da criança. Que rima com esperança. Duas palavras
nasaladamente doces, confortáveis para almas grandes de gentes grandes. As
crianças sabem o que é ser-se criança. Criança é gente pequenina, do mamar ao
gatinhar, do pedir colo ao desafiar para a brincadeira, do baloiço à bicicleta
de quatro pedais. Criança cresce ao centímetro. “Pula e avança”. Ao tornar-se,
triunfantemente, eréctil, depois de vários tem-tem, de breves arranhadelas
inofensivas, na tenra e rosada carnação, agarra-se aos joelhos onde lhe chega a
altura, que lhe são porto de segurança, pára-escorregadelas, passaporte para
braços abertos.
Quando, na
manhã de hoje, dia mundial dos de amanhã, se reabriram as portas do seu mundo
além muro de casa, as meninas e os meninos de um tão breve ciclo de brincar,
terão feito com os pais, na véspera, revisão da matéria dada por mestres
outros, de experiência feitos, de ciência informados, de mando encarregues.
Como se não bastasse o treino em viver-infantil, o não-ter-com-quem-brincar, o
não-poder-abraçar, o engolir-de beijos falados em linguagem de ternura, o nariz
enfiado no tablet dos desenhos animados, momentos de sossego para pais
exaustos, comungando do mesmo sentimento
de incompetência paternal.
Este
ano, hoje é, fofinhas e fofinhos, um dia
especial do resto das vossas vidas. Um dia em que nos prometeram, se nos
portássemos bem, a normalidade possível. Vós entrareis pela porta da mesma
escola, onde a mesma professora vos receberá a pedir-vos que deixeis os sapatos
fora da sala. Encontrareis brinquedos só para vós, ficareis separados dos
amiguinhos com brinquedos só para eles, dormireis a sesta em caminha que se vos
manterá fiel até ao fim da arrelia. Como trazeis a lição bem estudada (compreendida
não é possível), não sereis tentados a esbanjar os vossos abracinhos de
saudades, os vossos beijinhos repenicados a que o confinamento retirou o sabor
a frutos silvestres.
Alguém se
encarregará de vos explicar uma evidência com que estais familiarizados.
Rodeia-vos (à distância, claro) gente mascarada, mas só na cara. Não tem grande
graça. Pois é. O carnaval é mais fiche. Estranhastes a falta de coleginhas do
peito. Ficai descansados. Eles virão. Há pais com medo por causa dos filhos,
como há filhos com medo por causa dos pais. A vossa idade de terem medo vem
longe. Agora aproveitai para sorrir, cantar, dançar, pular, zaragatear, fazer
perrices, mijices, dizer palavrões sem
licença de entrada em vossas casas. Portastes-vos bem tempo de mais. Venham daí essas energias, vamos lá puxar por
esses músculos, por essas gargantas esganiçadas, por esses golpes de Karaté. É
melhor um barulho desarrumado mas feliz do que um tudo direitinho e
sossegadinho vestido de tristeza. Mas atenção: distâncias respeitadas, trocas
proibidas, mãos lavadas e relavadas, senhoras acarinhadas. Recorram à vossa
imaginação mímica e gestual. Verão como conseguem simular beijocas, abracinhos,
fiches!, adeuses.
Que esta
miunçalha com o dom de acender luzes em velhices sozinhas e escuras, volte
depressa a ser “um bando de pardais à solta!”.
M. Hercília Agarez, 1 de Junho de 2020
Está fabuloso este texto ... !! Delícias . ternas .. “ diferentes “ .. mas com o amor .. e a espontaneidade , sempre presentes ... GOSTEI IMENSO .. !!!
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