segunda-feira, 15 de junho de 2020

Flor em caixilho de pedra






                                                           Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero
                                                           De não poder confessar
                                                           Num tom de grito, num último grito austero
                                                           Meu coração a sangrar!

                                                                           Fernando Pessoa

    Com tantos dias para encher nesta inactividade caseira, a leitura é o porto de abrigo das minhas angústias, dos meus medos, dos meus vazios, dos meus fantasmas de futuro desacompanhado. Com o encerramento das livrarias, os olhos fugiram-me, cheios de razão, para livros lidos há mais de quarenta anos. Uma obra relida nunca à igual a uma obra lida. Iguais, os textos, diferentes, os olhos e o estado de espírito. Nessa altura, o meu argent de poche ia todo para bibliografia médica e para  congressos, cá dentro e lá fora. Valia-me (e vale-me) a tua biblioteca que a herança paterna veio largamente multiplicar, obrigando-nos a prescindir da decoração de uma parede para dar guarida a largas centenas de exemplares para todos os gostos.
    Tivemos sorte. Nenhum dos teus irmãos se interessava por coisas do espírito. Para eles só a matéria contava, fosse ela dinheiro vivo, afagado com volúpia, fossem bens passíveis de por ele serem trocados. Esse espírito fez deles  homens ricos, com carros potentes, moradias luxuosas, filhos em colégios de meninos-bem, mulheres super-enjoiadas e inúteis. Nós fomos felizes na mediania dos nossos hábitos que não excluía visitas a museus e a exposições, concertos de música clássica, e uma ou outra viagenzita a um estrangeiro europeu onde moram, há séculos, marcas de uma civilização que tanto disse, tanto fez, tanto nos deslumbra, tanto nos ensina.
    Os nossos filhos, que criámos para serem meninos-bons e não meninos-bem, já tinham optado por carreiras no estrangeiro quando, sem piedade nem dó, me deixaste encafuada no nosso ninho de casal e voaste, vá-se lá saber para que  destino. Quero crer que o Céu tinha reservado para ti um espaço exíguo, mas onde cabia uma secretária e uma pequena estante e onde podias fumar o teu cachimbo. Sossega. A colecção que cá deixaste está estimada e encarrega-se de te substituir numa presença  sensual com cheiro a Malboro.
    Li, até hoje, uns seis romances teus-meus. Tiveste sempre um fraquinho pelas literaturas russa e francesa. Calcula que me dei comigo, em páginas de Tolstoi, ao lado (mas com a devida distância...), de Anna Karenina. Foi num momento escaldante do enredo que encontrei esta fotografia a fazer de marcador, invenção moderna a dispensar engenhosas maneiras de não nos perdermos nos passos desconcertantes das personagens.  Parei, pousei o romance e mirei-me, remirei-me. Vi-me a cores. Vi a cores quanto me rodeava. Senti a frescura  desta sombra granítica, proeza escultural da natureza, senti o odor a aldeia, intenso e modesto, e recordei aquele ponto dos nossos encontros de namorados em férias. A minha pasta estava muito grávida porque eu levava comigo os calhamaços de livros e sebentas, cujo estudo intenso me garantiria a transição para o ano imediato.
    Não mais esqueci o que me escreveste na carta de resposta à que era portadora desta surpresa. Como não estou certa se aumento de peso regulamentar implicava alcavala na franquia postal de dez tostões que se aguentou  anos e anos. Minudências! Acho que a legenda tinha o seu quê de poético, apesar do tom baboso de enamoramento à moda antiga - “Uma flor encaixilhada em pedra”. Terei rido? Terei chorado?
    Vou falar-te dos meus achados na arqueologia das tuas estantes. Entre outras coisas, difíceis de enumerar (tu lias que te fartavas…), encontrei: a conta do hotel da nossa lua de mel, postais ilustrados de amigos em viagem, programas de concertos, desenhos infantis do Filipe e do Francisco, recortes de jornais e revistas, tickets de entradas em museus, um subscrito de uma carta do Dr. Faustino com o seu endereço (escrito no triângulo traseiro onde se molhava o dedo na cola seca para pôr à prova a sua eficácia), o menu do jantar das Bodas de Prata do teu curso, uma conta do alfaiate discriminada em letra inclinada, certinha, santinhos das comunhões dos pequenos,  tudo isto encarcerei numa caixa de charutos, a aguardar a prossecução das pesquisas. Que os livros-cofres, em lista de espera, não venham trazer-me nenhum amargo de boca…
   Ah! Já me ia esquecendo (last not least), um boletim do Totobola por preencher. Tu sabias que não se pode ter sorte em tudo na vida...
   

M. Hercília Agarez,  15 de Junho de 2020

1 comentário:

  1. Precioso texto. Preciosas recordações. Em tempo tão horrível como o que
    o que estamos a viver, as palavras conseguem ser um bálsamo.
    Eu assim sinto, e agradeço.

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