quinta-feira, 30 de abril de 2020

Porque nunca se despediu





Lembro-me de estrear um casaco de lã branco e de ir à estação de comboios da Régua, de mão dada com o meu tio esperar o meu Avô.
A noite já principiava, a minha mão tão pequena, segura, na mão dele.
As luzes de néon da bomba da gasolina que se avistavam da estação,
aos meus olhos, uma festa.
O meu Avô trabalhava na casa que ainda hoje (penso) existe no outro lado da linha, em frente às bilheteiras da estação, como chefe de escritório da CP.
Os meus primeiros anos de vida, foram passados numa casa "do Largo da Ponte" , cujas traseiras ficavam rente à linha do comboio,
o cheiro das máquinas a vapor o fumo, fazem parte de um "código" de memória de tão entranhado
e no meu caso não desagradável, mas doce, porque doces eram esses meus dias de criança.
Só mais tarde já mais crescida, comecei a andar sozinha pela estação, embora o guarda que estava na porta antes da gare,
não o permitisse a crianças.
As grades que ladeavam a estação, tinham largura suficiente para a minha constituição franzina
e num abrir e fechar de olhos estava lá dentro a passear-me,
a ver chegar e partir os comboios
a perguntar-me para aonde iam, de que mundos chegavam.
A faina dos bagageiros.
O restaurante, onde eu me sentava por poucos momentos, irrepreensível no meu ver,
recordo uma sensação de paz e alvura.
Os funcionários da CP abasteciam-se de víveres para o mês inteiro, num armazém paralelo à gare da estação, embora a entrada fosse do lado da rua.
Um mundo.
Mágico, cativante.
Lembro-me do rosto de muitos dos empregados de bata branca,
de um lado, tecidos vestuário, sapatos, etc. Do outro, mercearia.
Eu fazia questão de ir sempre nesse dia com o meu Avô,
sinto uma sensação nostálgica de saudade, mas muito presente como se fosse logo ali, como se o tempo fosse uma estrada.
Depois de uma caderneta previamente preenchida com todas as nossas necessidades, tinha que se introduzir numa ranhura, num espaço com um vidro opaco. Esse era o meu momento preferido, tentar fugir com o dedo, ao senhor que estava lá dentro e que me reconhecia por eu espreitar primeiro pela abertura.
Ganhei
-lhe sempre, excepto a primeira vez.
Ficou-me esse momento de ternura.
Esses dias de compras, sabiam-me a mel, dos rebuçados da Régua que comprava em frente e comia sentada nos degraus da porta do armazém.
Recordo muito mais coisas dos meus passeios clandestinos e inocentes pelo mundo da estação, flashes de dias bonitos de uma vida cheia de promessas.
O
nosso mundo" não cabe em nenhum texto, porque se estende e amplia no viver e no sentir de cada um de nós.
Na estação da Régua, ainda hoje uma menina espreita os comboios e vagueia livremente pela gare.
Porque nunca se despediu.


Ana de Melo

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