sábado, 11 de abril de 2020

Diário da quarentena





Vila Real, 2 de Abril de 2020

    Nestes primeiros dias de Abril, as suas proverbiais águas não deixam os seus créditos por nuvens alheias. Em tempos de alterações climatéricas, a natureza faz questão de manter a actualidade de uma sabedoria popular que raramente tem dúvidas e poucas vezes se engana.
    Lá no alto da serra, os pinheiros bravos enchapelam-se, agora, de amarelo, como impõe a sua fisiologia. Descontentes com o peso dos “poses” (amigos dos doutores alergologistas), sacodem os cabelos com tal agitação e persistência que as partículas invisíveis lhes fogem, lampeiras, esbaforidas. À boleia do vento, infiltrando-se nos seus interstícios, aterram em chãos urbanos como quem não quer a coisa. De mansinho, caem leve, levemente, sem que ninguém chame por elas. Espraiam-se à vontade, saboreando o charme do cheiro a cidade. Até que lhes chega o momento da visibilidade: uma chuvada não inopinada trata de arrastar, nas suas águas rasteiras, os pós amarelos, arrumados a um canto, formando manchas garridas.  Começávamos a perguntar-nos em que estação do ano vivíamos. Ele anda tudo tão transtornado! Mudaram tanto as regras do jogo da vida humana!
    Como, cá por baixo, encontram todas as janelas abertas, as poeiras rurais sentem-se convidadas. Entram para colorir superfícies austeras mais à mão, como o computador, de um preto apetitoso, sobrepondo-se aos parentes próximos, também eles a pedir pano.
     E aqui é que a porca torce o rabo! Estar em casa, tudo bem. Ninguém cá entra? Claro que não. Mas eu tenho os meus pergaminhos domésticos. E vai daí, toca a pegar na vassoura de cerdas pós piaçaba e no seu complemento directo, o pano do pó. O aspirador está de férias porque a minha lombalgia é incompatível com o seu uso.
    No meu tempo de criança, não me obrigaram a comer a sopa à custa de papões,  ladrões, lobos, bruxas cavalonas e demais ameaças arrepiadoras, pelo que não fiquei com aversão ao meio de transporte aéreo de feiticeiras feias, encarquilhadas, esgrouviadas e desdentadas. Assim sendo, dou início à guerra contra o inimigo, até hoje discreto e sem parentela e, metódica e aplicadamente, percorro o campo de batalha com as forças que me restam. E vai tudo raso, soalho e tijoleira. Ao levantar as partes possíveis de carpetes despenteadas, apercebo-me da sua surpresa púdica face à devassa de uma intimidade tão precatada.
    Após pequena pausa retemperadora, revisto paredes e tectos, não vão eles reservar-me alguma surpresa. Eis senão quando apanho, em flagrante de teia, uma tecedeira no pleno exercício do seu ofício. Está adiantada, a obra. E a aranha não infringe as regras de quarentena. Está em casa, a mais de dois metros de mim, mas… quem me garante não ser ela portadora de vírus específico para animais para o qual humanos não possuem imunidade? Pelo sim, pelo não, desfiro-lhe golpe fatal, recobrando, com este acto de valentia, fôlego para o passo seguinte. Arrumo a auxiliar de limpeza atrás da porta da despensa, mas não com a cabeça no ar porque não estamos em tempo de visitas. Pego no pano apropriado.  Sacudo-o. Porém, de súbito, invade-me tal quebranto que lá se vai o ânimo faxineiro. Como, para mim, limpar o pó implica arredar toda a cacaria decorativa, num baixa-levanta impróprio para seniores, tomo uma atitude, vergada às evidências. Com todo o respeito por conselho sábio e sensato, de autor anónimo, resolvo contrariá-lo, ou seja, vou deixar para amanhã o que poderia ter feito hoje.


M. Hercília Agarez 

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