segunda-feira, 30 de março de 2020

Ao encontro da Primavera

Foto:josé alfredo almeida



23 de Março de 2020


    Aqui atrasado, expressão de sabor popular, um inspirado legislador estabeleceu regras de procedimento a cumprir por utentes de bens e serviços, em situação de fila de espera. E vai daí, encarregou designer credenciado de criar suporte visual que materializasse a sua ideia filantrópica. Concentrado no isolamento do seu posto criativo, lesto foi ele a criar uns bonecos eloquentes, em fila indiana, cada qual no seu posto. Depois da imagem de um handicapé em cadeira de rodas, a de um idoso, a de uma inequivocamente grávida, de barriga a indiciar parto próximo e, por fim, senhora de menino ao colo. (A propósito desta, vem-me à ideia o poema de A. M. Pires Cabral - “Mulher com filha ao colo, em Dezembro”).
    Limito-me a chamar a atenção para os excessos limitativos do meu representante. Além da exagerada curvatura dorsal, o velho, careca, é apresentado com uma mão nas cruzes, outra na bengala. Nos tempos que correm, aquilo não é terceira idade. Será, isso sim, uma quarta adiantada...
    Até hoje, nunca reivindiquei os meus direitos seniores, a não ser nos descontos de viajante ou de frequentadora de cultura, esses rebuçadecos com que adoçam os nós outros, outra vez crianças. E não o fiz porque posso dar com alguém, do outro lado do balcão, afectado por miopia grave. Sendo o caso, perante a minha direiteza, só o B.I. pode safar-me. Sei bem que, na melhor das hipóteses, me espera qualquer um tipo de auxiliar de locomoção. Tivesse eu um bastão encastoado em prata! Havia de parecer uma “daquelas senhoras como só havia dantes”, de que fala Gedeão no poema “Mãezinha”…
   Adiante, embora atrás não venha gente.  Hoje, pelo meio dia, muni-me da lista das faltas de material, acumuladas há uma semana, e rumei ao supermercado mais próximo. Escolhi o dia. Esperei por este dia. Quis verificar, com olhos de rua, se a Primavera tinha obedecido às únicas leis por que se rege. Sim, obedeceu. Encontrei-a esplendorosa, desfazendo-se em sorrisos verdes, apenas de olhar interrogativo e desolado perante o eclipse (quase) total do género humano, a não confundir com Manuel Germano, como aconselha Mário de Carvalho.*
   Aí estavam elas, as árvores em folha, mais adiantadas umas do que as outras.  Aí estavam as flores em flor ou a caminho disso. Céu em azul integral, sol morno,  brisa breve.
    Fiz o curto percurso como se ninguém mais morasse por estas bandas. Espaços viários e pedoviários estavam por minha conta. Ao aproximar-me do sítio do fornecimento de bens de primeira necessidade ainda sobreviventes, àquela hora, deparei com três consumidores em espera, com idade de serem por mim ultrapassados. Puxando, em estreia, pelos meus galões etários, perguntei ao segurança, com a devida distância e humildade, se podia entrar. Que não, que tinha de me pôr na fila. Insisti só um bocadinho. Pediu-me o cartão do cidadão ou equivalente. Nicles. Invoquei um decreto cujo número e data desconheço, mas nada. Nicles. Meti a viola no saco e lá fui, de monco caído e rabo entre as pernas, para o lugar competente.
    Melhorei a disposição ao verificar a existência de tudo quanto procurava, incluindo a marca de ração a que a Miquelina se fidelizou, ela cujo nariz detecta e rejeita todo o comestível felino, molhado ou abiscoitado, abaixo de dois euros, de acordo com o seu pedegree de portadora de genes siameses.
    Ao sair, prometi à autoridade de serviço não voltar a apresentar-me no local sem identificação e agradeci-lhe, de sorriso sonsamente irónico, o ter-me julgado vinda ao mundo um bom par de anos mais tarde. Ficámos amigos, pelo menos até ao fim do seu desempenho nestas funções disciplinadoras. Um amigo fardado, ainda para mais!

* in O Beco das Sardinheiras



M. Hercília Agarez
Vila Real, 30 de Março de 2020

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