Algum
dia eu haveria de entrar na normalidade dos que te amam. Amo-te. E dói
escrevê-lo (que é pior, meu amor, do que dizê-lo). Amo-te absoluta,
impossível e fatalmente. E ouço, adolescente, uma música adolescente,
para me lembrar de ti, porque lembrar-me de ti é lembrar-me que não
consigo esquecer-te. E ouço música porque ouvimos música quando amamos, e
tudo, no amor é música, acústica da alma que quer ser devorada, e,
neste caso, dor (tão deliciosamente insuportável) de amar sem sequência
nem expectativa de contrapartida, amar unicamente o puro objecto que
desgraçadamente amamos. Isto é uma carta de amor, e é possivelmente
ridícula prova maior de que é, realmente, uma carta de amor), ou porque
perdi o hábito de as escrever, ou porque nunca tive a coragem de as
enviar.
Não percebes porque é que não te falo? Ainda não percebes
que, na personagem que de mim eu enceno, não cabe a ameaça de uma
derrota, a antecipação do desencanto, a sombra de um vexame? Não te
falo, para não saber que o que eu te digo é apenas a forma contida de te
dizer outra coisa, mas que essa coisa não é do teu mundo, nem do mundo
que eu construí, nem do precário mundo que a nossa fragilíssima ternura
mútua arquitectou. E tudo isto é literário, eu sei, mas – que queres? -,
a literatura é o melhor de mim e é o melhor de mim que vive dentro da
minha cabeça quando estou contigo.
E depois afastamo-nos.
Beijo-te a correr, não sei se já reparaste, e quase fujo, porque sair de
ao pé de ti é regressar ao que não és tu, o teu olhar e as tuas mãos, a
tua alma e a tua voz, e isso, meu amor, transformou-se no insuportável
intervalo entre dois encontros.
Esta carta de amor é um excesso
(e isso prova superiormente que é uma carta de amor): eu amo não a ideia
de amar-te (durante muito tempo eu julguei que era apenas isso), mas a
ideia de perder-me no meu amor por ti. E mesmo amar-te é um excesso,
porque tudo aconselharia que eu me limitasse a mitificar-te, que é a
melhor forma de evitarmos enfrentar a realidade.
Porque a
realidade, aqui, é como uma dor difusa, tu sabes como é, um incómodo
ainda não localizado, que progressivamente se vai definindo e acertando,
até que, insuportavelmente nítida, a sua imagem se nos impõe como uma
evidência. A minha dor é que eu comecei a amar-te, sem o saber, durante
aquele breve período de tempo em que sair de casa era a promessa
reconfortante de ver-te e falar contigo. Eu não sabia, repito, mas o
tempo ajudou-me a definir essa pequena dor, tão secretamente pavorosa:
cada vez que estou contigo (cada vez mais, meu amor, cada vez mais) é
como se a minha vida se virasse do avesso. E é verdade, é cada vez mais
verdade, que, quando penso nas coisas que ainda me falta fazer na vida, é
em ti que penso. E tenho medo, como um animal que instintivamente foge
do que sabe não poder atingir.
Eu penso em ti, ainda mais do que
te digo, e tu estás em tudo, mesmo quando não te penso, tu és a grande
razão, o horizonte sem nome que constantemente se desenha na minha
imaginação de mim.
Há uns anos, este seria o momento de desmontar
o discurso desta carta, de te mostrar os subtis mecanismos da alma e da
máscara, de desdizer ironicamente o que já disse, de insinuar que,
afinal, as-coisas-talvez-não-sejam-exactamente-assim. Mas as coisas são
exactamente assim, e a carta, que poderia transformar-se num confortável
exercício paródico, é, inevitavelmente, uma agonia e um embaraço. Esta
carta é um acto de puro egoísmo, que eu até talvez nem tivesse o direito
de praticar. É-te incómoda, necessariamente, e isso bastaria para que
eu me abstivesse de a enviar, dentro de um envelope azul. Mas o azul
fica-te tão bem, e as cores todas em ti como tu ficas no mundo:
exactamente.
Mas, repito: esta carta é um acto de puro egoísmo, é
como se não tivesse destinatário. E, no entanto, é preciso enviá-la
para que seja uma carta de amor, para que faça sentido como carta. Para
que seja amor. Mas podemos imaginar uma saída elegante: para que possas
conservá-la como pura carta de amor, quero eu dizer, sem o embaraço de
saberes que ela te foi escrita por alguém que não amas, não a assino.
Dou-te tudo: até a hipótese de esta carta não ter sido escrita por mim.
(E não, esta carta não pode ter sido escrita por mim. És tu – em mim –
que me faz escrever o que eu não escrevo. E isso é – de novo – o melhor
de mim.)»
António Mega Ferreira
.O melhor do AMOR ??..Esse sim .. perdure !!!
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