A luz de amanhã trará o fim da minha cegueira
Sim. O prazo
está a expirar. É Amanhã. Nem mais um dia, disseste, peremptório, num tom de
voz áspero e amargo. E aqui estou. Sozinha, a falar de mim para mim, a fazer-me
perguntas, a prometer-me promessas, a ensaiar-me respostas. Medito, qual monge
tibetano, mas não rezo. Pensar pode ser uma forma de rezar. Penso. Tanto que as
ideias se me desarrumam, se me engalfinham. Penso e sinto um peso sem peso.
Compreendo-te. Cansaste-te das minhas ambiguidades, das minhas meias
palavras, dos meus avanços e recuos, dos meus fantasmas espectrais. Cansado,
sim. Dos pontos de interrogação farfalhados no meu olhar, das vadiações entre a
confiança e o seu contrário, entre o querer e o temer. Criticas os meus acessos
de coragem, sempre retraídos por pruridos sem tino. Sim, tenho noção da minha
translucidez. Sou qualquer coisa dividida entre luz e sombra, entre estar
escondida e revelar de mim traços difusos. Sou página de difícil leitura,
tantos são os paradoxos, as metáforas, as antíteses. Um “novelo embrulhado para
o lado de dentro”, como o teu, o nosso, Pessoa.
Sinto o eco
das palavras desconcertante e imprevisível que me atiraste como
estilhaços de dúvida e surpresa, quando te estendi os lábios, com a frieza de
autómato. Nem deu para saber o sabor da tua boca. - Fui beijado por uma pedra,
comentaste.
Em frente
desta árvore exuberantemente despida, penso. Chego a invejar o seu destino sem
subterfúgios. Vive por ela e para ela. Não tem um outro. É feliz sem um outro.
Só lhe cobram as folhas e as flores e a sombra. Talvez os frutos. Não assim eu.
Eu tenho outro. E quero-o. Vou dizer-lho amanhã.
M. Hercília Agarez
Vila Real, 12 de Fevereiro
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