sábado, 16 de novembro de 2019

É ainda Outono



Fotos:josé alfredo almeida





«Em criança, eu já procurava as janelas
para fugir com o olhar.»

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Joan Margarit, «Misteriosamente Feliz», Língua Morta, 2015.
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«Como as abelhas antes de uma casa ser concebida para elas, a linguagem mora em lugares esconsos, sem janelas, quartos de arrumos, divisões vazias, secretas ou fechadas, por decorar ou à espera de obras; umas vezes, em túmulos mal fechados; outras, ao fundo de escadas que temos medo de subir ou que não conseguimos descer.»
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Alda Rodrigues, «O que acontece às palavras no escuro», in https://formadevida.org/, 2019.
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É quase Inverno o que sinto nas palavras
que me faltam, esses lugares vazios onde as
sombras se empilham à espera que o instante
as deflagre, e é ainda Outono nestas janelas
sujas e abandonadas, onde outrora naufragavam
risos, sortes e misérias, como se uma casa em
ruínas pudesse ser o mar, como a cor da música
sempre reflecte nessas cortinas que já não
existem mas que ainda agora dançam.
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É ainda Outono, nas folhas que persistem
lá fora, no precipício dos amarelos que
depositam assombros onde só há o musgo
submerso do silêncio, no tom irreversível do rio
que se vislumbra e se acumula em névoas
nos contornos quebrados dos seis vidros que
se abrem de par em par. É ainda Outono e as
fugas da infância fazem-se nos rendilhados do
ferro, na espessura lenta de uma teia de aranha.
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É quase Inverno o que sinto nas palavras
que me faltam. Entre insónias, não há janelas,
nem sequer estas janelas, e a linguagem é apenas
uma vertigem a que não me entrego, um sonho
que persiste onde um homem escreve a uma
mulher, o coração parado dentro de um poema.
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[Sandra Costa, da série «Epigrafia», 16 de novembro de 2019]

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