domingo, 18 de agosto de 2019

Que rica cabeleira!






    Como escreveu António Gedeão no seu poema “Mãezinha”, também a mãe deste cachopo foi uma daquelas senhoras que só havia dantes. Entende-se o que o poeta pretendia dizer. Senhora e mulher não era, não é, de todo, a mesma coisa. Naquela altura formavam-se em senhoras, com ou sem pós-graduação, em colégios de renome, meninas cujo currículo incluía rendas e bordados, pudins e charlotes, castanhas de ovos e ovos em fio, vários tipos de pontos de açúcar e outras minudências gastronómicas, incompatíveis com a estupidez de mãos de Marias e de Rosas. E também tinham uma cadeira chamada puericultura, outra, mais complexa, de protocolo e regras de etiqueta, ainda outra de religião e de comportamento cívico e moral. E outras competências femininas, carimbos de passaportes a darem entrada no sagrado sacramento do matrimónio, de validade a expirar mal a morte o dissolvesse. A recitação de poemas românticos, em português ou francês, com pronúncia do Norte, assim como o cerimonioso e titubeante dedilhar de teclas pianísticas (de onde haveriam de escapar uns pífios Strausses e Chopins) eram outras das aprendizagens avaliadas por formadoras, antes de concederem às candidatas o grau académico de Fadas do Lar.  

    Era uma senhora, a mãe deste menino. Alternava os seus passatempos domésticos com a metódica e escrupulosamente cronológica organização do álbum de fotografias do crianço, tiradas pelo baboso marido em momentos caseiros e desenjoados.  A legendagem competia à progenitora, o que a ajudava a não esquecer as adquiridas noções de ortografia e caligrafia. No verso desta imagem, após a data e o local, pode ler-se: “o Francisquinho e o seu barquinho”. Nós teríamos acrescentado: barquinho de areias salgadas, penteadinho à prova de nortadas.

    Que bela cabeleira! Forte, ondulada, de um crespo domável, esperando a mão adolescente do dono, de olho nas meninas, de pente em riste, em frente ao espelho, a aconselhar-lhe a mais adequada moldura para o rosto de finos traços e fatais olhos e a alertá-lo para a sua puberdade sem pêlos…

    Quem haveria de dizer que aquela fartura capilar redundaria em calvície precoce, a pedir peruca na zona devastada, a condizer com guedelhas meladas nas têmporas e na nuca? Como se estava longe dos transplantes, ficou assim mesmo, o Dr. Francisco Bacelar, com o beneplácito da esposa, Senhora Dona Hermengarda, cuja fidelidade e dedicação marital se não deixariam vencer por um acidente a que não terão escapado reis Luíses de França e outras cabeças coroadas (mas pouco fartas em cabelo), obrigando-os   a encafuá-las em mofo de cabeleiras fartas, feias e farfalhudas.

    Têm esta particularidade as fotografias do tempo em que não envelheciam em computadores e penes. São memórias perduráveis, encantadoras, que ajudam a visualizar tempos despreocupados, em que se remira o passado em nós, na inocência e na rabitesa, nas tropelias e atentados a joelhos e cabeças, nas poses infantis normais ou carnavalescas.

    Não há bom escritor que se esqueça da sua infância, mesmo se camuflada em personagem de ficção.  Ela é a menina dos olhos dos poetas, esses magos da palavra, capazes de nos enternecer com dizeres tão simples como este:


Pedagogia


Brinca enquanto souberes!

Tudo o que é bom e belo

Se desaprende…

A vida compra e vende

A perdição.

Alheado e feliz,

Brinca no mundo da imaginação,

Que nenhum outro mundo contradiz!

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Miguel Torga




M. Hercília Agarez
Vila Real, 18 de Agosto

2 comentários:

  1. Só a evocação de dois poetas maiores seria o suficiente
    para considerar este texto primoroso. Mas uma análise social
    e certeira de uma certa sociedade, apenas a partir de uma
    fotografia de um menino com caracóis é bem interessante.

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  2. ..Particularidades ..bem visiveis ..
    ..Primam as palavras ..
    ..E a fotografia ....

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