Como escreveu António
Gedeão no seu poema “Mãezinha”, também a mãe deste cachopo foi uma daquelas
senhoras que só havia dantes. Entende-se o que o poeta pretendia dizer.
Senhora e mulher não era, não é, de todo, a mesma coisa. Naquela altura
formavam-se em senhoras, com ou sem pós-graduação, em colégios de renome,
meninas cujo currículo incluía rendas e bordados, pudins e charlotes, castanhas
de ovos e ovos em fio, vários tipos de pontos de açúcar e outras minudências
gastronómicas, incompatíveis com a estupidez de mãos de Marias e de Rosas. E
também tinham uma cadeira chamada puericultura, outra, mais complexa, de
protocolo e regras de etiqueta, ainda outra de religião e de comportamento
cívico e moral. E outras competências femininas, carimbos de passaportes a
darem entrada no sagrado sacramento do matrimónio, de validade a expirar mal a morte
o dissolvesse. A recitação de poemas românticos, em português ou francês, com
pronúncia do Norte, assim como o cerimonioso e titubeante dedilhar de teclas
pianísticas (de onde haveriam de escapar uns pífios Strausses e Chopins) eram
outras das aprendizagens avaliadas por formadoras, antes de concederem às
candidatas o grau académico de Fadas do Lar.
Era uma senhora, a
mãe deste menino. Alternava os seus passatempos domésticos com a metódica e
escrupulosamente cronológica organização do álbum de fotografias do crianço,
tiradas pelo baboso marido em momentos caseiros e desenjoados. A legendagem competia à progenitora, o que a
ajudava a não esquecer as adquiridas noções de ortografia e caligrafia. No
verso desta imagem, após a data e o local, pode ler-se: “o Francisquinho e o
seu barquinho”. Nós teríamos acrescentado: barquinho de areias salgadas,
penteadinho à prova de nortadas.
Que bela cabeleira!
Forte, ondulada, de um crespo domável, esperando a mão adolescente do dono, de
olho nas meninas, de pente em riste, em frente ao espelho, a aconselhar-lhe a
mais adequada moldura para o rosto de finos traços e fatais olhos e a alertá-lo
para a sua puberdade sem pêlos…
Quem haveria de
dizer que aquela fartura capilar redundaria em calvície precoce, a pedir peruca
na zona devastada, a condizer com guedelhas meladas nas têmporas e na nuca?
Como se estava longe dos transplantes, ficou assim mesmo, o Dr. Francisco
Bacelar, com o beneplácito da esposa, Senhora Dona Hermengarda, cuja fidelidade
e dedicação marital se não deixariam vencer por um acidente a que não terão
escapado reis Luíses de França e outras cabeças coroadas (mas pouco fartas em
cabelo), obrigando-os a encafuá-las em
mofo de cabeleiras fartas,
feias e farfalhudas.
Têm esta
particularidade as fotografias do tempo em que não envelheciam em computadores
e penes. São memórias perduráveis, encantadoras, que ajudam a visualizar tempos
despreocupados, em que se remira o passado em nós, na inocência e na rabitesa,
nas tropelias e atentados a joelhos e cabeças, nas poses infantis normais ou
carnavalescas.
Não há bom escritor
que se esqueça da sua infância, mesmo se camuflada em personagem de ficção. Ela é a menina dos olhos dos poetas, esses
magos da palavra, capazes de nos enternecer com dizeres tão simples como este:
Pedagogia
Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende…
A vida compra e vende
A perdição.
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!
………………………………………………………..
Miguel Torga
Vila Real, 18 de Agosto
Só a evocação de dois poetas maiores seria o suficiente
ResponderEliminarpara considerar este texto primoroso. Mas uma análise social
e certeira de uma certa sociedade, apenas a partir de uma
fotografia de um menino com caracóis é bem interessante.
..Particularidades ..bem visiveis ..
ResponderEliminar..Primam as palavras ..
..E a fotografia ....