Imagem viva de realidade morta. Um apeadeiro especial na linha do Douro. Local de todas as partidas e de todas as chegadas termais. Antes de se posicionar no sítio atribuído, o comboio anunciava-se com estridentes silvos, ao mesmo tempo que diminuía a pequena velocidade. Máquina fumegante de cheiro a carvão, faúlhas intrometidas em narinas desprevenidas, goelas insaciáveis a pedir, por misericórdia, água, como camelo no deserto.
Carruagens mitificadas para os ainda por cá, teimosos na revisitação do passado. Primeira classe para gentes com classe, sem farnel, de traseiros em assentos aveludados, de redes nas costas. Separação de ricos e pobres. Conforto almofadado e desconforto de tabuinhas. Chegavam todos ao mesmo tempo, era o mais importante.
Aquistas estivais, de malas grávidas, para estadias prescritas por médicos ou por peso de bolsas. Hotéis e pensões, de grumete fardado, lampeiro a carregar bagagem de olho pregado em mãos habitualmente gorjeteiras, exibiam asseio. Prometiam mesa farta, reserva de direitos de admissão, sossego.
Apeadeiro. Local de bulício, de zerechia entusiasmada, de passos apressados, não fosse o bicho locomotor respeitar, ao minuto, o horário estabelecido. Quiosque garantia frescura de notícias, vendia postais ilustrados a enviar a familiares e amigos ficados. Crianços, adolescentes, homens, bicicletas. Só estas, no feminino. Árvores-toldos para repousos sem esplanada. Mas um cafezinho cairia bem. Ou uns tragos mastigados de velho vinho fino.
A modernidade não se compadece com saudosismos. Dos belos azulejos, de jardinzinhos aperaltados, de relógios gigantes de pêndulo a dar-a-dar. De cornetas a chamar viandantes como professor que faz a chamada. De mulher trabalhadora a biscatar, enrolando bandeirolas vermelhas em passagens de nível sem guarda. De revisores de alicate em riste a perfurar minguados bilhetes de cartão.
Restam os museus, como preservadores de memórias, de viveres antigos. Valha-nos ao menos isso!
M. Hercília Agarez
05 Janeiro de 2019
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