Nasci
na Régua, em Outubro de 1888, na mesma casa da Rua de Medreiros em que nascera
o Dr. Maximiano de Lemos. Saí da terra aos nove anos, para Lisboa, onde o meu
pai, o agrónomo José Correia Pinto da Fonseca fora chamado a exercer a sua
actividade profissional. Abandonada também a vida por meu avô materno, o
escrivão e tabelião José Fernandes de Almeida, fiquei ali quase sem parentes
directos.
Toda
a minha gente vivera, e vivia, nas freguesias de Samodães e Penajóia. Foi por
isso que Lamego, o território, a história e a arte lamecense influíram de
preferência e definitivamente sobre a minha sensibilidade que despertara e
enformava quando nas férias grandes vinha acolher-me à casa familiar da Quinta
do Pombal.
Da
Régua e do tempo ali passado ficaram-me na memória quadros alegres e tristes,
em maioria, felizmente, os primeiros. Recordo o deslumbramento matinal de um
nevão sobre os montes de além-rio, contemplado da varanda da casa da Rua dos
Camilos onde então vivíamos; as escolas de Medreiros, a oficial, que
frequentava também Leonardo Coimbra, em que pouco me demorei, e a particular,
quase fronteira, das Senhoras Lobatos; o circo Americano, onde, assistindo
diariamente aos ensaios dos ginastas aprendi como eles a desengonçar o corpo
tenro – o que em tempos ainda poucos desportivos me permitiu a vaidade de
uma superioridade física perante companheiros colegiais e universitários -; e
certas escapadelas pelas margens cascalhentas do Douro com a garotagem da minha
púrria.
Fundamente
me impressionou também o espectáculo do acompanhamento nocturno da
“Ferreirinha”, qual serpente das luzes trementes avançando pela base das
encostas para a Régua; e para sempre se me gravou no espírito e na alma a
lembrança da mãe que perdi aos seis anos, abençoando os filhos na hora última…De
pouco mais conservo memória nítida.
Quando
meu primo e amigo, o Dr. João de Araújo Correia, cujos escritos estão
revelando, além do estilista, o homem de ciência, de pensamento e de coração -,
me pediu para o Jornal da Régua qualquer coisa sobre a Régua,
verifiquei desconsolado que as minhas recordações infantis não proporcionavam
elementos para um artigo. Por outro lado, não me havendo nunca ocupado da
vida pretérita da vila – se o fizera exaustivamente o cronista oficial dela, e
por título de mérito, o sr. Afonso Soares! – nada possuía nos meus apontamentos
para oferecer aos leitores, que fosse matéria digna de uma minha colaboração.
Lembrei-me
então de lhes falar de um assunto inédito, referente, se não à Régua,
pelo menos ao Rio que a fez vila notável – das pérolas do Douro.
Pois
há pérolas no Douro? Decerto que há; e vou contar como o soube.
Foi
por 1920, no verão. O rio ia muito baixo, e no “ponto” cachoante da Curvaceira,
a areia dourada do leito avistava-se sob a água límpida e célere. Magoados os
pés nus nas valvas oblongas, negro-esverdeadas, de uma espécie de mexilhões
agarrados às asperezas do fundo, às ténues noções de História Natural valeu a
lembrança de um trecho da Descoberta da Terra de Júlio Verne,
em que se contava que havia daqueles moluscos em todos os rios.
Arranquei
um e abri-o. O animal era carnudo, amarelo-salmão deslavado quanto à cor, de
gelatina coalhada na constituição, no cheiro, enjoativo, intragável de toda a
evidência. Mas as valvas eram lindas interiormente, nacaradas, laivadas de
cambiantes do arco-íris destacando sobre fundo levemente rosado, orladas de um
tom suave de pérola.
Por
aquele tempo andava eu muito interessado pela carga arqueológica do Cheruskia, apresado
no estuário do Tejo com um recheio formidável de caixotes repletos de espécies
arqueológicas assírias e babilónicas, imensos rolos de tapetes orientais e
montanhas de conchas embarcadas no fundo do Golfo Pérsico com destinos às
fábricas teutónicas de botões e outras gentilezas capeadas de madrepérola ersatz. O
lindo nácar do fôrro dessas conchas!
Mas
onde há nácar há pérolas! E abri, e fiz abrir um milheiro de moluscos,
revistando cuidadosamente as entranhas dos pobres sedentários, cuja vivissecção
nos deixou entre as mãos umas dezenas de pérolas esféricas e aljôfares
barrocos, dos mesmos suaves tons do nécar das valvas…
Guardamos
eu e a família, que assistira às operações extractórias, sigilo sobre o achado,
não fossem a curiosidade ou a suposição de um possível lucro, levar a breve
trecho ao extermínio da espécie. Bem bastava à desdita dos pobres mexilhões a
caça que lhe davam os pescadores do rio, utilizando-lhe a carne para
isco… E os anos foram passando.
Com
ideia neste artigo resolvi-me a dar estado científico ao meu descobrimento.
E entreguei ao meu amigo Dr. António Temudo, do Museu e Laboratório Zoológico
da Universidade de Coimbra, algumas cascas para exame. Devolveu-mas embrulhadas
numa cópia de trechos do capítulo sobre Mollusques bivalves, da
Histoire Naturelle de la France, de Alberto Sranger, os quais traduzo
para comodidade dos leitores.
“Unio
pictorum (Lineu) Anodonte ou Mulette des peintres. Mexilhão
do rio: Esta espécie foi correntemente designada por mulette dos
pintores, porque as suas valvas oblongas e delgadas eram empregadas nas
oficinas, para conter certas cores. O comprimento dos moluscos varia de 0,06 a
0,15. A espécie é comum nos rios de uma grande parte da França.
Género
Unio, Mulette: As mulettes são
moluscos de água doce que vivem nos rios, pântanos e lagos.
As
valvas destes moluscos são formadas de um nácar em geral muito brilhante, e o
de algumas espécies é utilizado no comércio para o fabrico de botões
nacarados e alguns objectos de adorno. Outrora esses moluscos foram sobretudo
procurados por causa das pérolas que acidentalmente contêm. Tais pérolas são o
resultado de uma secção abundante da matéria nacarada devida a um verme que se
introduz entre as lâminas que compõem as cascas, perfurando-as e roendo-as.
Ainda que as pérolas de melhor água não provenham dos mexilhões de rio, mas de
um outro género exótico, a pintadine, bivalva marítima que habita o
Golfo Pérsico e as costas de Ceilão, acham-se contudo algumas vezes, nas
conchas das mulette pérolas de grossura e formas diversas,
esféricas, irregulares, com colorido variável: brancas, leitosas,
rosadas, afogueadas e amareladas.
Na
Escócia a pesca das pérolas das mulettes foi outrora muito
produtiva, vendendo-se as redondas, da grossura de uma ervilha e perfeitas
sob todos os aspectos, entre 75 e 100 francos. Em França, as pérolas dos
Vosges, provenientes de mexilhões recolhidos no Vologne, gozaram de certa
reputação, tendo-se porém renunciado à sua colheita por terem perdido em toda a
parte, as pérolas das mulettes, o seu antigo valor.
Estes
moluscos vivem nas águas represadas e correntes de todas as partes do mundo.
Como oferecem semelhança com os mexilhões de água salgada, são chamados,
correntemente, mexilhões de rio. Não são comestíveis, por coriáceos e de gosto
extremamente enjoativo".
Um
conselho aos curiosos. Deixem em paz os mexilhões do Rio, para que as “pérolas
do Douro” não sejam dentro de algum tempo mera expressão histórica e… poética.
1937
Vergílio
Correia in “JORNAL DA RÉGUA” - 2 de Maio de 1937 – Nº 301
Sem comentários:
Enviar um comentário