Foto: josé alfredo almeida |
Que me perdoem os caçadores e demais
apreciadores de cães (que não perdem pela demora…). Que me não venham dizer que
o gato não conhece o dono. Nem que o cão não gosta do gato e o gato não gosta
do cão. Histórias que imagens e realidades observáveis desmentem.
A análise do simbolismo do gato nas
civilizações antigas revela-nos que este animal assume heterogeneidade quanto
às suas tendências, ora benéficas, ora maléficas. Se no Japão é considerado de
mau augúrio, na Índia representa a “beatitude do mundo animal”. No antigo
Egipto era venerado como benfeitor e protector. Pode ler-se no Dicionário de
Símbolos:
, “O gato
simboliza a força e a agilidade do felino, que uma deusa tutelar põe ao serviço
do homem, para o ajudar a triunfar sobre os seus inimigos escondidos”.
Interessante é um pormenor de que se
reveste na tradição muçulmana e que se encontra difundida entre os
supersticiosos: o gato é tido como favorável, excepto se for preto. Entre os
índios da América do Norte, e ainda citando o referido dicionário, “o gato
selvagem é um símbolo da sagacidade, de reflexão, de ingenuidade, é o
observador malicioso e ponderado, e alcança sempre os seus propósitos”.
Acrescentaria que idênticas qualidades assume enquanto animal de companhia,
como se comprova pela investigação do lugar que ocupam junto de personalidades
de todas as áreas das letras e das artes.
Na literatura universal encontramos, entre
muitos outros apreciadores de gatos, Edgar Põe, Kafka, Baudelaire, Hemingway,
Zola e Pablo Neruda. Entre nós são conhecidos os casos de Agostinho da Silva,
Luís de Sttau Monteiro, António Gedeão, Hélia Correia, Eugénio de Andrade,
Manuel António Pina, entre tantos outros. José Jorge Letria, que convive
diariamente com os seus nove companheiros felinos, escreveu, recentemente, um
livro, Amados Gatos, recomendado no
programa de português do 7º ano de escolaridade. Trata-se de contos que
“reinventam a vida de gatos famosos e dos seus ilustres donos, assumindo-se
como uma homenagem a estes felinos que o Homem nunca conseguiu domesticar”. Uma
referência bibliográfica para os interessados.
Fazemos aqui uma excepção ao sair da
literatura portuguesa para registar gatos
e mais gatos de Doris Lessing,
Prémio Nobel em 2007. A
autora revela um profundo conhecimento da psicologia dos companheiros
ternurentos que só pode ser o resultado de um convívio muito estreito e
amistoso com eles:
“Gatinhos. Uma criaturinha viva na sua membrana transparente, rodeado
pela imundície do seu nascimento. Dez minutos mais tarde, húmido mas limpo, já
mamando. Dez dias depois, uma migalha com olhos macios e nebulosos, a boca
abrindo-se num silvo de corajoso desafio à enorme ameaça que sente debruçada
sobre ele. Nesta altura, em vida selvagem, confirmaria a sua selvajaria,
tornando-se um gato selvagem. Mas não, uma mão humana toca-o, um cheiro humano
envolve-o, uma voz humana sossega-o. Depressa sai do ninho, confiante em que as
gigantescas criaturas á sua volta não lhe farão mal. Cambaleia, depois anda,
depois corre a casa toda. Acocora-se no caixote de areia, lambe-se, sorve
leite, depois agarra-se a um osso de coelho, defende-o contra o resto da
ninhada. Gatinho encantador, gatinho bonito, lindo fofinho pequenino delicioso
bichinho – e vai-se embora”.
Miguel Torga preferia os cães que lhe
entregavam as perdizes abatidas em dia de sorte. Mas, como homem do campo que
era, conhecia e amava toda a bicharada rural. Nela se inspirou para os seus Bichos onde há para todos os gostos.
Vamos conhecer o Mago:
- Ouvi dizer
que já nem sardinhas comes?!
- Essa agora!
É todos os dias…
- E que nunca
mais caçaste?!
- Ainda esta
manhã…
Piadinhas
do Lambão. É claro que os mimos da D. Sância lhe haviam deformado o gosto… Metia-lhe os petiscos ao focinho,
tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais… Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o
tempo, debruçado três horas sobre um
buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer
lá no fundo? Deixá-los viver! As
coisas são o que são. Em todo o caso ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma
ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas
novas e nos pardalecos que filava por desfastio na primavera. Que demónio! Mais, seria exagerar.
-
Mas que não sais de casa, sempre agarrado às saias…
Na
verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se
pelas almofadas… Digestões
difíceis, vinha-lhe um migalho de sonolência… Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o
via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta:
-
Mago! Mago! Bicho, bichinho!
Regressava
aos lençóis. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão… O pãozinho da boca! Que remédio senão torcer caminho e,
com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da dona…
Miguel
Torga. “O Mago” in Bichos
Sabe-se que Eugénio de Andrade tinha sempre
um gato por companheiro. Aliás, segundo notícia do seu funeral, no Público, “Houve muita gente no velório
de Eugénio de Andrade, mas isso seria de esperar. O que não seria de esperar
era que houvesse gatos, e logo sete, às seis da tarde, espreguiçados pelos
degraus das traseiras, na Cooperativa Árvore, a apanhar um sol de
Primavera-Verão e ‘a dormir em novelo/como só os gatos dormem’”. Escolhi, dele,
o poema que se segue:
ACERCA DE GATOS
Em Abril chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao
domingo.
Eugénio
de Andrade, Antologia Breve
Na sua obra prima, Os Maias, romance de três gerações, Eça apresenta o velho Afonso em
toda a sua bonomia aconchegada e generosa. Junto ao fogão de sala, com um gato
por fiel companhia:
“….sereno,
risonho, com um livro na mão, o seu velho gato aos pés. Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era
agora (desde a morte de ‘Tobias’, o soberbo cão são- bernardo) o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em
Santa Olávia, e recebera então o nome
de ‘Bonifácio’: depois, ao chegar á idade do amor e da caça, fora-lhe dado o
apelido mais cavalheiresco de ‘D.
Bonifácio de Calatrava’: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades
eclesiásticas, e era o ‘Reverendo Bonifácio’….
Num livrinho de versos que marca a sua estreia na escrita literária, Algures a Nordeste, A.M. Pires Cabral,
amigo confesso de bicharada, poetisa, assim, o pacífico felino:
O
GATO
contemplemos
o gato o gutural amante
o
latin lover desta fauna a Nordeste
catus
felix felicíssimo de haver
sol e sexo e
ratos: as cousas de folgar
contemplemos o
gato no palco dos telhados
briga por sua
dama ubíqua e caprichosa
e com dizer
miau de imediato
fende a noite
das colheitas e dos rasgos
o cão vendeu a
cauda o gato não
por nenhum
preço o dúctil membro alado
e assim os
bigodes: o eréctil
calibre das
cautíssimas manobras
(mesmo
acontecendo que por vezes
Um gato ou
outro engorda e renuncia)
Do mesmo autor
citamos passagem do romance A Loba e o Rouxinol:
“Tobias, o gato, devia, se bem compreendesse
a sua missão, dar caça à rataria do soto, que era basta e cravava o dente em
tudo que fosse menos duro do que o dito dente. Mas não estava no seu feitio
preocupar-se muito com ratos. Era um gatarrão amarelo listrado, gordo,
pacífico, sonolento e tão contemplativo como o dono. Em vez de passar horas
esquecidas a murar, preferia sentar-se ao colo do pai, a ronronar até que o
dono o emudecesse, e a deixar em paz a laboriosa colónia dos ratos, delegando
as suas obrigações no trigo roxo e nas ratoeiras iscadas com toucinho.”
Manuel
António Pina, desaparecido há pouco, ficou conhecido pela sua obra multímoda,
pautada pela qualidade, pelo sentido de humor, pela crítica social certeira,
pela poesia, pelas histórias para crianças, em suma, pelo conjunto de uma obra
que lhe mereceu a atribuição, entre outros, do Prémio Camões.
Quando era
entrevistado em sua casa, aparecia sempre acompanhado de um gato, ele que, no
quintal, dizem, tinha dezenas deles.
No seu último livro de poemas, Como Se Desenha Uma Casa, homenageia-os
poeticamente:
Os Gatos
Há um deus único e secreto
Em cada gato inconcreto
Governado um mundo efémero
Onde estamos de passagem
Um deus que nos hospeda
Nos seus vastos aposentos
De nervos, ausências, pressentimentos,
E de longe nos observa
Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
E compassivo o deus
Permite que o sirvamos
E a ilusão de que o tocamos.
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