quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

"O Mestre de Nós Todos..."

Aquilino Ribeiro

                                            "Araújo Correia é dentro de fronteiras o mais universal dos escritores"


"João de Araújo Correia, a pedido dos seus camaradas desce do Peso da Régua e vem de longada por aí abaixo tocar dois dedos de palestra, bater no nosso copo com o seu copo, ver como medrou e se arrebicou esta velha matrona de Lisboa? Venha, amigo e senhor, novelista dos primeiros e pensador dos melhores pensamentos. Ao mesmo tempo que distrai a vista de mago do espectáculo ingente da sua terra, com a serpe torva do Douro a correr ao fundo das bancadas verdes das vinhas, e das multidões de três províncias, de facies levantino, que se abastecem nessa nova Sarmacanda, ouvirá para reconforto - o reconforto necessário a todos os corações que têm batido apaixonadamente pelas nobres causas, desde as do homem algemado ao seu drama biológico, às da arte que se reduzem, afinal, à dor, insatisfação, intoxicação psíquica, entrega demoníaca - como os camaradas sinceros o estimam e admiram. Eles dir-lhe-ão que tem uma pena impressionista, admirável, para descrever as formigas humanas do seu rincão, agitando-se,girando,distribuindo-se aos quatro horizontes do formigueiro, e não mentem desta feita; que dispõe para tanto de um poder observador,comparável apenas àquele olhos dos flamengos, que não perdia a "pitada"nem o menor gesto substantivo e útil à representação, e também falam certo; que uma fada ignota lhe entregou um prisma de filósofo sem estagirismo, em que se reflectem os ludríbrios da vida, e terão acertado com um dos tópicos secretos da sua arte; que possui a língua com todos os seus recursos notórios e herméticos, no que ninguém o excede, e todos os que o leram terão reconhecido. Sim, bem sabe, e se o não sabe objectivamente, sente-o, que são, estas as suas qualidades primas de escritor. Regionalista? Podia haver disso com medula própria, neste quintal a que um avião de jacto dá volta numa hora? Araújo Correia é dentro de fronteiras o mais universal dos escritores.
Não é o mestre da Régua, como se dizia na pintura, no obscuro século de Quinhentos, o mestre de Ferreirim, ou de Linhares. Mas o mestre de nós todos, que andamos há cinquenta anos a lavrar nesta ingrata e improba seara branca do papel almaço; mestre dos que vieram no intermezo da arte literária com três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura.
Venha a Lisboa, Araújo Correia, tocar, com meia dúzia de camaradas, que o apreciam deveram, o seu copo, se não cheio de vinho genuíno que das janelas da sua casa vê crescer nos arretos titânicos da Beira-Douro, cheio deste vinho do dia, a que se não dá um estalo de língua regalado, mas suspeitoso, feito porventura a martelo como tudo o mais, arte, palavra, verdade, em despeito dos belos rótulos das garrafas e dos bem empalhados garrafões. Mas as nossas almas, à face da sua, serão verdadeiras."

Aquilino Ribeiro    

Sem comentários:

Enviar um comentário