segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Contos Bárbaros:O Douro de corpo e alma




Nasci numa casa branca,
Sempre caiada, antes da Vindima
Por mestre Lima, o caiador.
Deitava para o prado,
Que sustentava o gado
De um lavrador.
Não tinha grande horizonte...
Mas, tinha um quintal
Capaz de fornecer
Mesa real
(...)
Quando nasci, na alva de Janeiro,
Uma bruxa, que andava no telhado,
Veio ter com minha mãe
E deu-lhe este recado:
Vai ser um desgraçado,
Porque nasceu com alma de poeta
(...)

                                                                                     João de Araújo Correia in Lira Familiar  


Não nasceu poeta, nasceu com alma de poeta. Porque a poesia não é só versos e é tão vulgar encontrar versos sem poesia como poesia na prosa. Tal acontece com Araújo Correia. Se querem vislumbrar a sua alma de poeta, procurem-na nas suas crónicas, nos seus contos. Ela está lá, basta ter nos olhos sensibilidade para a descobrir.
O médico-escritor, mau grado as colaborações em jornais e revistas, autonomizou-se um tanto tardiamente. Durou quarenta e dois anos a sua actividade de escrita, iniciada em 1938 e terminada em 1980, cinco anos antes da derradeira subida a Canelas, sua aldeia natal. Ele próprio explica o facto:"Escondi a minha vocação como se fosse vergonha. Perdi tempo, sem ser Proust mais capaz de o recuperar".
Por outro lado tem nítida noção de que no nosso país os escritores são olhados de esguelha, incompreendidos, desrespeitados. Sobre esse estatuto reflecte na crónica "Pina de Morais" inserta na colectânea CARTAS DA MONTANHA. Escreve:"O escritor em Portugal, é como o serrano que teima em plantar vinha no alto de uma serra. Obedece à vocação literária como o serrano obedece à mania de ver enchapelado de parras e desfeito em vinho um picoto gelado.(...) Cala-te, escritor! À parte o perigo que é mostrares a alma, obra de Deus, às meninas dos olhos do teu semelhante, ninguém se compadece do mal interior que te obriga a escrever. Cobre-se de sorrisos e de coroas o corpo escalavrado do tuberculoso. O escritor, doente raro, que aceitaria os sorrisos e repudiaria as coroas, negam-lhe em vida a bem-querença e dão-lhe coroas mal o apanham morto. Coroas artificiais..."
Apesar desta visão pessimista, João de Araújo Correia não para de escrever. A sua obra conta cerca de quarenta títulos, numa continuidade regular em que vaza a sua paixão pela sua região duriense povoada das gentes que lhe protagonizam a ficção e pela língua portuguesa, qual senhora em que não admite que lhe toquem nem com uma flor...

João de Araújo Correia facilita aos estudiosos da sua obra a tarefa de lhe coscuvilharem a vida, à cata de episódios que salvem a sua biografia da linearidade e simplicidade que ela encerrou por opção.Na realidade, o que mais interessa conhecer da existência de um escritor além dos locais de nascimento, de estudos, do exercício de actividades? Não é indiferente, por exemplo, ter-se nascido e vivido junto ao Douro ou do Guadiana, do Marão ou da Serra da Estrela. Porque o meio imiscui-se no homem, molda-o, determina-lhe temperamento e os gostos, marca-o para todo o sempre, segura-lhe as raízes.
De Canelas do Douro para a Régua, umas saltadas a Vila Real para fazer exames ou percorrer, com o pai, uma cidade que o extasiava, estudos no Porto, na Escola Académica e na Faculdade de Medicina, interrompidos por doença tratada com os ares salubres da aldeia natal. De novo o Porto, de novo a Régua, a sua "Pátria Pequena" aconchegada, airosa, com vistas privilegiadas para os dois ícones coreográficos - serras majestosas recortadas num céu que beijam e o rio corpulento e másculo, senhor do seu nariz, rumorejante e ameaçador primeiro, menino calmo e bem comportado, depois.
No Porto fez amizades, respeitou pedagogos, admirou pintores e escultores, avistou Junqueiro, leu e escreveu. Mergulhou nos clássicos que nunca abandonaria, dará sequência à avidez que o levou a Camilo, apenas com sete ou oito anos. Dos Mistérios de Fafe partirá para tantos outros que dele farão um eminente camilianista, como pode ver-se na sua obra Uma Sombra Picada de Bexigas.
No campo profissional desdenhou grandes centros urbanos, locais de uma dita civilização e de tertúlias  e preferiu, conscientemente, vestir a pele daquele João Semana dinisiano que o levaria a deslocar-se, de burro, e depois de carro, às aldeias mais recônditas e cujos habitantes não sobejava dinheiro para extras com a saúde. Habituo-se. Trabalhou no seu consultório de onde a sua vista, de férias por breves minutos, se alambazava de socalcos e de água, de barcos rabelos e de árvores, de Doiro e de Marão. Era o seu eremitério, uma das palavras  mais vezes empregues quando se fala do autor de Sem Método. Assim o baptizou ele, aí saboreou os prazeres da leitura e da escrita, do convívio familiar, da visita de admiradores e, claro, de se sentir útil àqueles que se entregavam nas suas mãos clínicas.
Trabalhava de dia no consultório e escrevia de madrugada, daí o título Horas Mortas, escolhido para uma colectânea de crónicas. E daí, também, o facto de nunca se ter aventurado a ir, no campo da ficção narrativa, além da novela. Se a tal não o impede a falta de génio, trava-o a falta de tempo para empreender uma aventura literária que poderia pôr em risco a sua dedicação ao exercício da medicina. Ficou-se, assim, pelo cultivo da crónica e do conto, ambas as modalidades a uma experiência de vida enquanto cidadão atento e crítico, de estendido dedo acusador a injustiças e arbitrariedades. Na realidade como na ficção, exerceu o seu magistério. Intelectualmente bem apetrechado, arguto conhecedor da psicologia do seu povo, cabia-lhe a missão de o educar, de o moralizar, de lhe apontar os defeitos e de lhe exaltar  as virtudes. É ele, esse povo anónimo, de unhas enterroadas e tez curtida pelo sol, labutador até ao limite das forças, tantas vezes explorado, sem instintos reivindicadores, o herói, mais vezes do que o anti-herói, o protagonista de histórias verosímeis, palpitantes de vida, de movimento, de dramatismo.
Com estreia de escritor datada de 1938, com o Sem Método - Notas Sertanejas, João de Araújo Correia publica, no ano seguinte, a sua primeira obra de ficção Contos Bárbaros, agora, de novo, reeditados. Não deu ouvidos a quem lhe contrariou o título, por demasiado agressivo, talvez. Manteve-o e deu a explicação: "Os contos que aí ficam são bárbaros. Contra a vontade de alguns amigos meus, dei-lhes esse título, porque, em minha consciência, não descobri outro mais próprio, escreveu em "Nota Explicativa". E no prefácio à segunda edição: "Refundir os Contos Bárbaros seria uma barbaridade. Saíram tão de dentro, tão espontâneos e tão fluentes da alma do autor que seria criminosa a tentativa de os civilizar. São bárbaros por natureza. (...) São ficções próprias da terra onde nasci e donde me provém o cerne de escritor."
São conhecidas as opiniões dos escritores de maior vulto, contemporâneos do nosso autor. sobre a sua arte de narrar, sobre o realismo e a força sugestiva das suas efabulações, sobre a mestria da concisão, o desprezo do acidental, do acessório, de divagações e considerações, da falta de unidade das intrigas. Parcimonioso em descrições, o contista agarra instantâneos, à maneira dos impressionistas, sugere mais do que descreve. Por isso, como escreve João Bigotte Chorão, De todos os géneros literários, o conto é o que mais se aproxima da poesia. O que ele procura captar não é a vida, mas um instante da vida.
Citemos David-Mourão Ferreira:

João de Araújo Correia, mestre na arte de narrar, a muitos títulos se singulariza nas letras contemporâneas: pela pureza e comunicabilidade do seu estilo, a variedade dos assuntos, a flagrância das personagens, e a capacidade - tão rara em contistas portugueses - de se "despersonalizar", assumindo a individualidade de imaginários narradores, que do seu mundo voluntariamente descrito nos oferecem múltiplas, inesperadas e saborosas perspectivas.

O autor, assumindo ou não o estatuto de narrador, adapta a linguagem a cada um e faz desfilar diante de nós figuras humanas, predominantemente rurais, personificando vícios e virtudes, o bem e o mal, personagens criadas pelo efabulador a partir da realidade circundante observada com olhar clínico e a tal alma de poeta. Vê-se o fervilhar da vida em aldeias então densamente povoadas, parecendo-nos assistir a curtas-metragens, ouvir o linguajar das gentes analfabetas, os gritos de dor, o som dos trovões, as discussões exaltadas. Parece-nos ver o brilho da lua e das estrelas, as igrejas e capelas, as assimetrias sociais corporizadas nos solares e nas cardenhas, nas vestes de cetim e de serrobeco remendado.
Esta colectânea é exemplo do que fica dito. Constituída por vinte e seis contos, alguns aproximando-se, pela sua brevidade, das inglesas short storis, todos dedicados  a pessoas que decerteza mereciam este gesto de cortesia, têm como espaço as aldeias durienses e situam-se em tempos de mulas, de almocreves, de feiras mensais, de brasileiros torna-viagem, de solares e fidalgos, de barões e baronesas, de caminhos hostis aos caminhantes.
Trata-se de histórias da vida humana, na sua complexidade física e anímica, protagonizadas por homens e mulheres que do sublime caem no grotesco, do crime no castigo, mais trágicas do que cómicas, plasmadas na dureza de um espaço de trabalho e de suor que contrasta com mordomias e riquezas, com ambições e desilusões. Lições de vida e lições de morte, esta sempre a espreitar, ameaçadora, a tornar-se mais condenação que redenção. Mereceria morrer o neto do Tio Chapeleiro ao aproximar-se gulosamente, vindo do Brasil, da saudosa figueira dos figos de pau? E o avô, mereceria, no seu zelo sem limite, confundir o rapaz com um ladrão? E a velha das Panelas, tão suja  e tão feia que metia medo à miunçalha, terá pecado tanto que merecesse tal fim?
Se a morte é um dos temais mais versados nesta obra, outros merecem a atenção do seu autor. À cabeça vem o seu bem conhecido amor pela natureza vegetal que o faz assistir ao abate de uma árvore como se de homens se tratasse. É um tema recorrente nas suas crónicas, marca presença nos seus contos. Leia-se "A Mimosa do Carrapatelo", o seu nascimento, a sua vida esplendorosa, manto de cor aromática a sobressair, pela sua envergadura, entre colegas raquíticas que substituíram espécies imponentes. O Dr. Queirós de "Por Causa de um Beijo" foi infeliz nos amores. Foi assassinado. Feliz, no entanto, terá sido no meio das suas vinhas onde se refugiava para ler, sobretudo naquela manhã primaveril em que contemplou quase em êxtase, a sua cerejeira mais temporã que as da Penajóia. As cerejas bicais, carnudas e suculentas, que lembravam rubis em dedos trémulos de mulher friorenta, sugeriam-lhe a carne feminina que lhe era negada.
De referir a more por amor bem diferente da das "meninas" da poesia trovadoresca que se queixavam: "moyro d`amor que me deu meu amado". Por amor morrem, por exemplo, D.Pedro,  "O mestre-escola dos Dízimos", Rosa de "História de uma doente" e o tio João de Abade de "A morte do pai". Morre para a vida material o engenheiro que, por uma desilusão amorosa, se faz padre e se torna misantropo, em "O Vestido de Branco". Miguel, do conto homónimo, em vez de morrer, mata e enlouquece na prisão.
A este propósito consideramos interessante analisar, embora de fugida, como trata as mulheres, nos seus contos, o escritor reguense. Alguns deles trazem-nos ao pensamento a conhecida expressão "a carne é fraca" e o título de um romance de Camilo - O que fazem mulheres. De uma maneira muito simplista poderemos dizer que as solteiras são levianas, aventureiras e atiradiças, têm sangue de mais nas guelras gulosas como a Rosa de "História de uma Doente"; as casadas são mal amadas,desprezadas, vêem-se rejeitadas pelos maridos que as substituem por amantes interesseiras ("O Tio Patuleia"); as viúvas são beatas, como em "Cabeçada", mas não se contentam como o amor a Cristo...
Da galeria masculina gostaríamos de salientar os casos que mais nos impressionaram: "O Enforcado" e o comendador de "Conto de Natal". É o primeiro o paradigma do pequeno lavrador duriense que vive da venda dos produtos das suas terriolas e que as ama e defende como se de mas se tratasse. Um ano de crise na lavoura, provocada por moléstia devastadora, pôs fim a messes de trabalho. Não foi só ele a vítima, só que dela se apercebeu primeiro por não ter outra fonte e rendimento para sustentar mulher e filhos. Firmou a primeira letra e a condição de devedor depressa o arrastou para o acto tresloucado. Clarimundo, que com dinheiro comprou uma comenda, tornou-se avarento a ponto de não querer casar-se para não ter de sustentar família. Figura desumana, não assume os filhos que tem com a governanta, um em cada ano, entregues à parteira para lhes dar sumiço. Ao ouvir o padre a apresentar um Menino Jesus verdadeiro, abandonado na igreja e orientando o sermão para situações idênticas, levanta-se, identifica-se como pai da criança e pede para casar com a mãe dela. Conto edificante, este, contraria a tendência do autor para os fins dramáticos característicos de outros contistas.
Outras figuras masculinas bem delineadas e ainda não referidas são o Dr. Hermenegildo, médico de uma aldeola que descarrega o ódio por esse espaço de trabalho numa pobre doente que corre atrás da sua fama (conto homónimo), o mendigo "meio mágico" que plantou uma mimosa junto da casa onde recebia esmola e caldo, o padre femeeiro e dono de boa biblioteca onde pontificavam, segundo as beatas, os "livros do demo" ("Os livros do Diabo"), o alcunhado de Católico, amigo dos santos de que era devoto e que o ajudaram a percorrer sem custo a caminhada entre a pobreza e a riqueza, entre a condição de almocreve e a de comerciante, inimigo dos homens, mas regenerado com a morte da mulher, e muitos outros.
Não desvendamos mais. Esperamos que a nossa intervenção tenha sido motivadora da leitura deste livro, classificado com quatro estrelas em notícia do Público, que aqui está presente, com farda nova, graças aos esforços conjugados entre a família  do escritor, a direcção da Tertúlia e o editor Dr. Baptista Lopes. No ano em que se comemora as bodas de diamante...

Peso da Régua, 23 de Janeiro de 2015

M. Hercília Agarez

1 comentário:

  1. Sim , uma "convidativa , e forte "sugestão de leitura..
    acredito , vai surpreender ,o leitor..

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