I- “Era ainda pequenino, acabado de nascer”,
mas lembro-me, no meio de alguma sombra, do primeiro fogo que vi. Eu brincava,
com o Aires e o Manel, no quintal da casa onde nasci; seria Verão, e no
entardecer, porque o meu Avô, ao fundo, sentado num cesto vindimo, vestia
colete e embrulhava um cigarro de tabaco de onça. O ar tinha uma calma de
convento e só as crianças algaraviavam nos caminhos. Corríamos com os arcos, que descarrilavam dos ganchos,
perdendo-se nos bardos de um calço rente ao muro. De repente, o meu Avô pegou
na bengala que o ataque lhe impusera,
levantou-se a gesticular, mandou-nos parar, e gritou pelo Alberto que dava
palha ao Castanho. Minha Mãe também acorreu, pois quando o Pai se alterava toda
a estirpe desassossegava.
Em Santo Estêvão, no caminho alto que dá para
o Rodo, uma chama, logo espalhada em contágio descontrolável, começava a
devorar uma casa e outras anexas. Quase todas tinham muita madeira na sua
feitura e o incêndio alastrou com a rapidez de um roubo. O povo despertou num
clamor de tragédia. Mulheres, de canecos à cabeça, corriam a despejar a água
colhida numa fonte escassa, situada no fundo da rampa; os homens, de sacholas e
pás, lançavam a terra que arranhavam
no caminho. Eu e os meus amigos largamos tudo e fomos para ao pé do meu Avô, a
quem faltou a saliva para colar a mortalha. Batia com a bengala no chão e dizia
para o Alberto: “Depressa! Chama o carro de praça para ir avisar os bombeiros!”
Lembrei-me do inferno e dos pecadores. Jurei que iria ser sempre “um rapaz
muito bem comportado”, pois se as chamas infernais eram assim, então a minha
Mãe tinha razão quando me dizia para comer a sopa toda.
Mal o carro vermelho, tocando a sineta, chegou
ao Fial, parece que as labaredas amainaram em respeito. Mas alegria tivemos nós
quando o vimos a fazer a curva da árvore
queimada, capacetes e machados reluzentes de homens que vinham “acabar com
o fogo”. Vários, aos gritos, se lhes dirigiram, ensinando o atalho onde o carro
não cabia. Em desafio, pareceu, as chamas alteraram-se como se tivessem
encontrado restos de papel. Correndo, os bombeiros lançaram-se àquele inferno
verdadeiro, espalhando instruções, clamando ânimos, recusando desfalecimentos.
Ainda hoje, ao escrever estas linhas, me emociono com o recordativo. Quando, no
final, vencido o abrasamento, eles, descompostos e afogueados, desceram para a
Régua, deixaram atrás de si o triunfo cantado no agradecimento dos atormentados,
que, varrendo as cinzas da sua amargura, sonhavam com casas de cantaria.
Fiquei
sempre com essa impressão juvenil de reverência e carinho pelo sacrifício e
solidariedade dos nossos bombeiros, consolidada vida fora, algumas vezes
lembrada quando as peripécias da vida, muitas vezes, me esbofeteiam com a
surpresa.
II- A sirene
dos Bombeiros ouvia-se no alto de S. Gonçalo. Era um chamado que afligia. Começava por um grito de desespero, de quem é
atacado à falsa fé, seguido por prolongado gemido de sofrimento, esperando uma
ajuda caridosa. Repetido, como se ninguém acudisse, esse apelo sonoro, num eco
estendido pelos montes e vales, dilacerava as almas e escurecia a natureza. Os
homens suspendiam as fainas, soerguiam-se, olhavam em redor, lançavam o olhar
para Avões ou São Domingos, firmavam-se em Remostias ou no cimo do Peso;
queriam ver onde se elevava o fumo, se era dentro ou fora da “vila”. Tiradas as
“ teimas” e assente a origem, debruçavam-se, de novo, para a terra que lhes
dava o suor do sustento.
Os tempos de que trato eram de necessidade, em
que uma sardinha de barrica dava para três, comia-se cebola com sal e broa com
azeitonas, mas havia uma enorme riqueza de solidariedade. As gentes sofriam com
o mal alheio, gostavam de ajudar e sentiam como suas as lágrimas vizinhas. A
escassez irmanava no relevo dos gestos. Ser bombeiro era fazer parte dessa
honra, ditada pelo falar popular, soldados da paz e serventes da humanidade, voluntários do mundo e escravos da lida
contra o infortúnio, corpos fardados e almas
civis.
III- As noites
do Douro, nesse Agosto de 53, eram mais escuras do que hoje. A sua claridade
vinha da lua, dos faróis de carro que, de quando em vez, alumiavam o silêncio
dos vinhedos, um ou outro poste, de longe em longe, plantado pela boa vontade da Chenop, o petromax de quem levava a recolher a
ebriedade, que esquecia nas tabernas as injustiças da sua sorte desajustada na
sua contabilidade doméstica.
Foi numa
dessas noites que a Régua se cobriu com o clarão da tragédia. A Casa Viúva
Lopes, forte estabelecimento comercial da época, ardia diante do pasmo
assustado da terra, tolhida pelo sobressalto e pelo dó. Nem o rio ali ao pé nem
o clamor da população segurou o recheio ou as traves que o defendia. Bem
lutaram os bombeiros; lutaram até ao fim e até à morte. Lá ficou o Senhor
Figueiredo, imortalizado pela pena do nosso Escritor, também ele imortal, João
de Araújo Correia, como o João dos Óculos, que ganhava a vida a desenhar
palavras no chumbo tipográfico. Lá ficou, queimado pelo seu voluntarismo, pela
dedicação e amor ao próximo.
Na nossa Região, os Bombeiros Voluntários da
Régua sempre foram uma referência. Associação humanitária a dar «vida por
vida», num ditame nunca contestado, servindo, sem olhar a quem, nas
dificuldades físicas e morais, na vida e na doença, na esperança e na morte.
Mais uma vez se comprovara, bem duramente, a tradição e a lenda da sua
história.
IV- Conheci-o
em Moçambique, para onde fora mobilizado, no ano de sessenta e oito. Mais concretamente,
foi em Porto Amélia que começou uma das minhas mais lindas amizades. O Jaime
Ferraz Gabão – é dele que se trata – deixara um dia a sua Régua em busca de
outros horizontes que lhe dessem, e aos seus, novo sentido à vida. Pertenceu a
essa plêiade de cabouqueiros que em África assegurou a sobrevivência sem
chibatas, antes com suor repartido entre brancos e negros, respeitando as
gentes, pois há sempre uma alma para dar a Deus. Ofereceu-me a sua mesa e as
suas palavras nas noites em que brilhavam as acácias rubras sob os candeeiros
escurecidos pelos mosquitos. Sentia-lhe a saudade pelo regresso, mas, também,
receio de um dia ter que abandonar tudo - por pouco que fosse – depois de anos
de sacrifício. Colaborámos, na distância – ele há tempos e com melhor saber –
nos semanários regionalistas da nossa terra, cada qual na sua independência e
companheirismo. Eu regressei e ele ficou.
Um dia
abraçámo-nos na Rua dos Camilos. Ele viera nessa leva, inventada por uma qualquer
pejorativa mente, de “retornados”. Ainda tentara ficar, mas a onda de
oportunismo e adesão cobarde aos valores nunca professados não lhe sossegavam
as entranhas. Chegou de olhos tristes e coração despedaçado. Depois de alguns
anos de aptidões reconquistadas, o Jaime adoeceu no corpo, que no espírito
nunca sarou. Prolongou a doença o
mais que pôde, mas quando ela chegou ao fim não encontrou grande resistência:
ele já se cansara de lutar, de andar de abrigo
em abrigo em busca da serenidade.
Foi numa
tarde de Junho, quando a Régua é um inferno de calor, que ele subiu para o Peso onde descansa
eternamente. Foram os nossos bombeiros que o levaram, associado que era. Atrás,
com os seus familiares e amigos, eu recordava-o numa mistura confusa, em que
cabiam as memórias dos meus mortos, dos fogos e das cinzas, mas também os
carinhos dispensados aos vivos, ajudando, até, a nascer muitos que perpetuam o
nosso mundo.
Agora que
vem aí o Verão, estação para algumas descomposturas e traições humanas ofensivas
da natureza e dos socorros dos soldados
da paz, que não falte o apoio e a boa
fé de quem manda, mesmo neste tempo de desgosto e baixeza moral.
M. Nogueira Borges
Abril 2011
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