terça-feira, 20 de maio de 2014

Os livros de João de Araújo Correia-8



Caminho de Consortes
(contos)

Autor: João de Araújo Correia
1º Edição: Imprensa do Douro, 1954


"Deu que matutar a muita gente o título deste livro quando saiu a lume pela primeira vez. Tanto, que tive de me explicar. Publiquei a tal respeito, em jornal ou revista, cujo nome esqueci, uma nota que veio a figurar no livro intitulado Manta de Farrapos. Trago-a para aqui para não obrigar ninguém a adquirir a Manta - quase esgotada ou esburacada. E como se segue:

"Quando publiquei o meu livrinhos de contos, assim intitulado, pensei que houvesse reparos a opor ao texto e nenhum reparo a opor ao título...O livro foi julgado e absolvido, à parte objecções de mínima importância. Quanto ao título, alguns julgadores, e bons julgadores, implicaram com ele como se dissessem: não o percebemos.
Caminho de Consortes é título de aldeia. Como o pretório julgou na cidade, é crível que os juízes o tenham aferido pelo cada vez mais léxico citadino. Tomaram provavelmente a palavra consortes no sentido de cônjuges. Se foi assim, o título seia lindo para obra semelhante a uma vereda, florida ou espinhosa, por onde transitassem pares bem-casados ou de mal-casados. Como o meu  livro não é propriamente matrimonial, os bons juízes não puderam atinar com a razão do título.
Como não gosto de escrever confuso, basta a cada arte o seu mistério intrínseco, vou ver se dilucido o mofino título.
Consortes, a meu ver, são os que participam de qualquer espécie de sorte, seja a que se talha no céu, por via do casamento, seja a que se talha na terra, por via do negócio ou herança comum. Se dois ou mais tratantes se associam numa empresa serão consortes. Se dos ou mais indivíduos herdam uma propriedade, serão co-herdeiros e também consortes. Se a propriedade é rústica e se divide em parcelas, é necessário que uma via conduza a todas  e a cada uma. Chama-se a essa via caminho de consortes.
Por extensão, será caminho de consortes o que sirva exclusivamente prédios convizinhos. Como, nas povoações, o quelho de consortes, beco primitivo de duas linhas de casas ou quintais.
Usa-se o termo caminho de consortes para as regiões em que os bens rústicos, de pais a filhos, se vão dividindo até o último torrão. A parte que cabe a cada herdeiro, quase sempre sorteada, para evitar litígio, também se chama sorte. Mas, o que importa saber-se é que o prédio rústico, uma vez partido, exigirá caminho de consortes se cada uma das partes não der para caminho público.
Na matriz como nas escrituras, a modo de dizer em cada folha, aparece a expressão caminho de consortes. O prédio tal confronta do Nascente com caminho de consortes...
Comparei o meu livro a um caminho comum de personagens que nele figuram. Caminho humilde, caminho estreito e sem saída, como é o de consortes, o símile que busquei, para o baptizar, não me pareceu o maior dos disparates que nele se contenham.
Esta explicação seria ociosa se os dicionários não fossem omissos no tocante à língua rural, que também é língua. Mas, antes omissos do que errados. É fácil dicionarizar o caminho de consortes virgem. Difícil seria desenredá-lo se o definissem assim: caminho por onde passeiam, de braço dado ou aos cotovelões, os cônjuges de aldeia.
Seria dupla pena destruir-se tanto pitoresco."

João de Araújo Correia

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