Eu acordava de sonhos, para mergulhar num rio de emoções.
Eram as férias grandes.
O tempo parecia mais elástico,
do que a fisga que eu levava no meu bolso,
nunca fisguei nenhum pássaro (de propósito), era só para fazer ver.
Eu e os meus
amigos, o sol ainda nascente a espreitar os nossos passos.
O rio àquela hora da manhã, podia esperar. A bola não. Novinha em folha, prémio de um furo num tasco lá na nossa rua, onde além de
variadas guloseimas, vendiam nougats, por sinal os melhores do mundo. E gelados
com brindes de desenhos animados.
Uma pedra de
cada lado e as balizas estavam feitas.
Havia regras estipuladas e outras feitas na hora, uma rasteira uma canelada com
quem ninguém contava...
A bola
brilhava, o sol assistia de camarote.
Fintas de
mestres, golos. Juntava-se a rapaziada a assistir, a torcer a assobiar.
No meio do entusiasmo, ouvia-se uma Mãe a chamar:
- O almoço está
na mesa!
- Estamos já
nos pênaltis!...
Depois, com o estômago a dar horas íamos todos a correr. Cada um para a sua casa.
No almoço, a
germinarem ideias. Brincar ao berlinde ou
às cartas, à carica ou ficar a ler
um livro até o calor amainar?
Subíamos a uma árvore e ficávamos a ver o
rio ali tão perto de nós, inventávamos feitos heróicos, em que
ninguém acreditava ou falávamos de algo
que deu na televisão, às vezes, construíamos
estradas em riscos de giz, onde
pequenos automóveis circulavam pelas nossas mãos, alguns a
grande velocidade. Prendas que
alguns de nós tinham ganho no último Natal.
Já a tarde ia
alta, era hora de
ir para o rio. Nas mãos,
pequenas pedras a fazerem ricochete na água.
O riso
límpido das lavadeiras, recordo-o como revoadas de pássaros a levantarem voo.
Perdiam-se nos ares depois de ecoarem pelo Douro. Na água, espuma de
sabão e o barulho quase sincronizado da roupa a bater nas pedras do rio.
Nadávamos, exibíamos proezas, e
antes de irmos embora, mais um jogo, onde no final
todos ficávamos a ganhar.
Ao princípio da noite depois do jantar, sentados em escadas ou em
muros, ríamos de tudo e de nada.
Ali na nossa rua, duas pedras a fazerem de balizas. Começava o jogo, o último do dia. A bola quase novinha em
folha, de pé em pé. Marquei um
golo e alguém disse que não
valeu... Havia sempre um intervalo quando avistávamos um carro ao fundo da estrada. E nós sonhávamos acordados, com a visão rápida e fulgurante de um Toyota.
Retomávamos o jogo.
Nas portas mulheres e homens sentados a falarem de que algo foi mandado para o
espaço, outros conversavam sobre o fim do
mundo.
A lua branca e
redonda, iluminava toda a rua. Enquanto driblava a bola, de repente uma voz de rapariga:
- Também posso jogar?
Acabou o jogo!
Quase a
adormecer, eu olhava para a bola
que me iluminava por dentro, como a lua a nossa rua.
E sonhei com a voz atrevida da rapariga. Também posso jogar?
Ana de Melo
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