segunda-feira, 25 de março de 2019

Olhos de ver

Foto:josé alfredo almeida



    Há lugares neste Douro emblemático que, vendo o visitante de saída, lhe dizem com anfitriã bonomia.: - Volte sempre! Até à próxima! Cá o esperamos para novas descobertas! Galafura é um deles. Primeiro a aldeia, a abrir os braços hospitaleiros logo à entrada. Uma religiosidade tão intrínseca ao espírito do povo, marca, iconicamente, o início da escalada até um miradouro de todos os deslumbramentos, teimoso na veleidade de levar a palma a concorrentes de santos e de vistas.
    Aí situou Miguel Torga a acção de um dos seus mais dramáticos contos – “Maria Lionça” (Contos da Montanha), arquétipo de mulher rural com tanta força de alma como de corpo. Pois não carregou ela o filho morto, do comboio até à povoação, para aí o devolver a chão de raízes de ambos?
    Galafura. Uma subida íngreme, em caminho de traçado sinuoso, serpenteado, alerta para a sinalética sem tirar o fôlego a motores todo o terreno, resignados a pequenas velocidades, não vão sair-lhes os bofes pela boca…
    Olhando para a direita, ao subir, e para a esquerda, ao descer, os condutores embevecidos vão farejando bermas compreensivas para encostagens exigidas pela gula de degustar a paisagem, indescritível com palavras, por não terem elas cor, nem cheiro, nem som. Logo se gera empatia entre visitante e visitado, depressa transformada em flirt romântico, alheio a olhos bisbilhoteiros de câmaras fotográficas.
    S. Leonardo de Galafura, o taumaturgo, com direito a habitação sem mofo nem morcegos, mas condenado a dormir ao relento, não se satisfaz com olhares de olhar. Ele, e os restantes elementos do seu reduto sagrado, de que é o centro nevrálgico, entendem que são dignos de ser vistos com olhos de ver. Como é o caso do malogrado marco geodésico, amparo de traseiros de gentes em contemplação babada de rio e margens, a quem não ocorre interrogarem-se sobre a utilidade daquele cone granítico com cara manchada de velha macilenta, tutelado por oliveira milenar. É pena. Ficariam a saber encontrarem-se a 640 metros de altitude, informação calada, idêntica às que são debitadas por pilotos de aviões.

    Esta imagem de rochedo escultural exemplifica os dotes artísticos da mãe natureza. Muitas lições de arte oferece ela! Pena que muitos dos que são chamados a vê-la se limitem a olhá-la. É a mesma coisa, sussurrarão os leitores melindrados. Não para mim. Para um tal de Hamlet, “ser ou não ser, eis a questão”. Para mim, e neste contexto, a questão é olhar ou ver…    


M.Hercília Agarez
Vila Real, 25 de Março de 2019 

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