segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Verde que te quiero verde*

Foto : josé alfredo almeida


Aqui a passadeira não é vermelha. Não estamos a ver pisá-la o luxo da sétima arte em dia de festival. Isso é lá na côte das estrelas, em Cannes. Aqui a festa é a da natureza. Verde. Com as suas surpresas e as suas bizarrias. É a exaltação da policromia. Aqui as jóias são as folhas das vinhas. As actrizes são as videiras vestidas de garridice vegetal tecida no tear das cepas. Sem assinatura de autor, sem griffe.
O amarelo aparta-se do verde. Rivalidade de castas. Pergaminhos.  Parecem alcatifas, as vinhas. Aquece-as um sol outoniço, protector. Goza, enquanto pode, a sua caminhada cada vez mais periclitante. Ao acordar, estremece ao ver que algumas folhas não resistiram à brisa nocturna.
Mais verde. Um caminho com dupla função: separar vinhedos e encurtar caminho em direcção ao rio, ali bem perto. Parece ilusão de óptica, manipulação, osmose. Caminho verde. Atapetado de ervas daninhas. Verdes. Passadeira para passantes humildes, estrelas sem estrelas, sem condecorações, sem troféus. Passadeira verde. Verde. Verde que te quiero verde.



* Título de um poema de Federico Garcia Lorca



Vila Real, 29 de Outubro de 2016.
M. Hercília Agarez

Viver na água

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-825

Foto: josé alfredp almeida

(Re)Conhecer a Régua-271


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Paisagem pintura

Foto: josé alfredo almeida 





Um socalco
dois socalcos três socalcos
uma videira duas videiras três videiras quatro videiras
um cacho dois cachos três cachos quatro cachos
cinco cachos
(...)
uma esperança
um sorriso
um hino
ah!
um rio 
Douro


Joaquim Ribeiro Aires


Pontes da Régua-823

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-822

Foto:josé alfredo almeida

Arte urbana-32

Foto: josé alfredo almeida


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, in "Poemas"

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Desafio


Foto:josé alfredo almeida

    Uma vida entre linhas e botões. Entre molas e colchetes. Entre chitas e cambraias. E fitas de todas as cores e larguras. Rendas e guipures. Espiguilhas e nastros. Fazendas para fatos e vestidos. Entretelas e chumaços. Agulhas. Para coser e tricotar e crochetar. Miudezas incontáveis. Tudo para toda a costura. Gavetas com lotação esgotada. Prateleiras heróicas resistem ao peso. A ordem na desordem. No chão nascem os sem lugar. Mais sorte têm os rolos a servir de arranjo em cima do balcão. Diminui o espaço para os passos do vendedor. Deixá-lo! Que os clientes não saiam sem os precisos. Alfaiates, modistas e simples costureiras. Senhoras à moda antiga. O croché em vez do café...
    Resistência. Resiliência (não sei se se escreve assim a palavra recentemente introduzida na linguagem dos  políticos porque não vem no dicionário). Um desafio a prontos-a-vestir de chineses e de feiras vendidos ao preço da uva mijona.
    Uma vida. Longa. Um amor ao ofício. A preservação de um passado que a fortuna não deixará durar muito.


Vila Real, 26 de Outubro de 2016
M. Hercília Agarez

Pontes da Régua-821

Foto:josé alfredo almeida

Barco na paisagem-220

Foto:josé alfredo almeida

Festa das cores

Foto: josé alfredo almeoda

terça-feira, 25 de outubro de 2016

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

sábado, 22 de outubro de 2016

Escadas do céu

      
Fotos: josé alfredo almeida


"Logo adiante da casa, o monte desce até ao Douro: logo por trás da casa, o monte sobe até aos cimos onde há uma ermida. O que sobe e o que desce é tudo admirável de vegetação, de verdura, de águas, de sombras, de belas vistas - mas para passear por lá é quase necessário andar de gatas."


Eça de Queirós

Pontes da Régua-815

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-814

Foto:josé alfredo almeida

Epistolografia de Camilo de Araújo Correia





" A inveja que eu tinha a esta capacidade numa simples frase nos deixar um aceno de bonnomia e humor!"

A. M. Pires Cabral


Gostava de aqui publicar outras cartas do médico e escritor Camilo de Araújo Correia.Quem as tiver, faça o favor de as enviar para esta minha "morada"(patriapequena@gmail.com) e eu terei todo o gosto de as coleccionar e revelar, pela primeira vez, publicamente.
Esta é uma  primeira sua carta,  talvez de muitas que por aí andam perdidas ou arrumadas em caixas de memórias antigas. Esta carta, como tantas outras, podia ser uma  daquelas ele escreveu a muitos de nós, quer na pele de amigos, quer de seus fiéis leitores das suas crónicas no jornal "O Arrais" ou dos seus livros contos e memórias de estudante de Coimbra, quer ainda de  pacientes  de um consulta ainda no tempo  fazia clínica e urgências no seu velho "Tio Luís" ou tão simplesmente que aconteceram por um encontro feliz e inesperado, como uma simples visita a uma escola para falar de cultura, de livros e escritores que admirava, com o seu pai, o que Camilo fez, como muito gosto, várias vezes na sua vida. 
É caso desta magnífica  carta que enviou em 24-3-90 à Senhora D. Maria Otília de Figueiredo (ainda viva e de boa saúde) que, naquele tempo, era  a professora e directora da Escola Primária de Mouramorta.
Vale a pena ler esta peróla de escrita,  toda ela  arte fina trabalhada com palavras requintadas e um humor elegante, para  também entender a simplicidade, humildade e  generosidade de um cidadão bom que, a  dispensar  o agradecimento  de visita a uma escola, expressava ser um dever: "limitei-me a estar aí, ombro a ombro, a distribuir migalhas de cultura, muito geral, fáceis de encontrar na sacola de qualquer sexagenário."

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

La maja desnuda *



    Partiste saciado. Vieste, amantado de noite, vais-te no alvor do dia. Como um fugitivo, acovardado. Vais e vens. Sabes que sempre te espero com o sabor adocicado da minha nudez madura e segura. Não me vendo. Dou-me. Não te cobro amor. Sinto-me paga com o prazer das tuas mãos macias percorrendo com vagar o cetim da minha pele. Apertas os meus seios de donzela à medida do seu côncavo, como quem avalia a autenticidade de uma pedra preciosa.

    Partiste. Partes, sempre. Voltas, sempre. Até quando? Aproveita o meu apogeu físico. Não és o homem dos meus dias, mas as minhas noites perdem o sentido sem o calor sensual do teu corpo rijo a entrar no meu, sorrateiro, com avidez suave e terna.

   Sigo-te, qual maja desnuda, com olhos de vigília. Segues apressado. Abençoa-te e absolve-te a luz matutina, ainda tímida e nem sempre cúmplice.


* Nome de quadro de Francisco de Goya pertencente ao Museu do Prado, Madrid.



Vila Real, 20 de Outubro de 2016
M. Hercília Agarez

Pontes da Régua-813

Foto:josé alfredo almeida

Barco na paisagem-218

Foto:josé alfredo almeida

Barco na paisagem-217


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Olhos na paisagem

Foto:josé alfredo almeida

Pontes da Régua-812

Foto:josé alfredo almeida

Barco na paisagem-216

Foto:josé alfredo almeida

Olhar o Douro

Foto:josé alfredo almeida

Cartaz cultural - CAN CUN





Com a entrada gratuita, a ver e a ouvir - https://www.youtube.com/watch? v=KUQT7Q5as4M - neste próximo Sábado, pelas 21.30 horas, no Teatrinho da Régua, uma singular banda portuguesa da modena música portuguesa*

                          

 *CAN CUN é a banda de Bruno André Azevedo, Bruno Coelho e Jorge Simões, um trio de Vila Real que se juntou em 2014 para desconstruir um imaginário complexo assente em sintetizadores, riffs, ritmos em loop e melodias sonhadoras. Se por um lado o nome sugere paisagens de areias brancas, águas límpidas e faunas tropicais, a sonoridade itinerante entre o dream pop e o rock dos anos 90 mostra-nos uns CAN CUN crus e obreiros de texturas sonoras espessas. Uma espécie de natureza mutável na sua génese transformadora, com raízes na imponente Serra do Marão e horizontes que desaguam num azul cristalino do Oceano Pacífico.