segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

João dos Óculos



Funeral do Bombeiro João Figueiredo, conhecido por João dos Óculos


Quando em 1953, ardeu por completo, nesta vila, a CASA VIÚVA LOPES, empório de secos e molhados, como se diz no Brasil, morreu no incêndio o bombeiro João Figueiredo, mais conhecido por João dos Óculos.
No dia seguinte ao fogo, vi o cadáver, estendido de costas, do lado de dentro de uma abertura, que tinha sido, poucas horas antes, uma das portas da grande mercearia.
O corpo do João, ligeiramente vestido, como que ostentava, em toda a extensão das partes desco­bertas, o que se diz, em Medicina, queimaduras do primeiro grau.
Não sei se a rápida morte do João foi devida às queimaduras, tal­vez mais extensas do que as osten­tadas, se foi devida a asfixia ou queda. Não li relatório de autó­psia nem sei ase o Jo foi autopsiado. Sei que morreu du­rante o incêndio da CASA VIÚVA LOPES.
Era um pouco triste e um pouco frio, no trato, o João dos Óculos. Mas, homem bem comportado, honesto compositor na IMPRENSA DO DOURO. Vi-o trabalhar, muitas vezes, sem erguer olhos do componedor.
Tive muita pena do desgrado bombeiro. Tanto mais, que me eram simpáticos os seus padrinhos e pais adoptivos, o já cansado tigrafo João Monteiro e sua mulher, a Senhora Glorinha, proprietários de uma arcaica tipografia quase morta chamada TRANS­MONTANA. Tinham descido de Vila Pouca de Aguiar à Régua, com o seu prelo, como se tivessem embarcado para o Brasil. A Régua é chamariz de quem precisa de governar a vida.
Tive muita pena do João dos Óculos, falecido em 1953. Quando, em 1955, festejou as bodas de diamante a benemérita ASSOCIAÇÃO DOS BOM­BEIROS VOLUNTÁRIOS DO PESO DA RÉGUA, lembrei-me dele e da sua trágica morte. E, vai daí, andando a passear no meu quarto, improvisei um so­neto à sua memória. Digo improvisei, porque me apareceu, no cérebro, desde a primeira à última pa­lavra. Nasceu-me, de mais a mais, a conversar com um dos meus filhos, o Camilo, que não é nada tolo, como toda a gente sabe.
Por ele não ser tolo, recitei-lhe o soneto antes de o escrever.Mas, que má impressão lhe causei! Premiou­-me os catorze versos com uma coroa de catorze espinhos. Disse-me que eram versos de cego.
Versos de cego, em 1955, eram uma versalhada, que os ceguinhos entoavam na rua, ao som da viola, violão ou outro instrumento de corda, para apurar tostões. Levavam de terra em terra, tocando e can­tando, o noticiário de grandes casos. Eram, quase sempre, eco de gran­des crimes, principalmente crimes passionais.
Estou a ouvi-los entoar a ver­salhada, que, na opinião de meu filho, era mãe do meu soneto.
Embora...Publiquei os meus catorze versos numa folha ilustra­da, comemorativa dos setenta e cinco anos dos nossos Bombeiros.
Aqui reproduzo o soneto como se repetisse a minha oferenda a um quartel que festeja, em 1980, o pri­meiro centenário. É como segue:

BODAS DE DIAMANTE

       O João dos Óculos nasceu bombeiro
Embora fosse pálido e franzino,
Cumpriu até o fim o seu destino
Com impoluta alma de guerreiro.
       Nenhuns bros lhe foram cativeiro
       Mal da sereia ouvisse o som mofino...
       Em uma noite de luar divino
       Foi encontrar a morte num braseiro.

       A sua Associão, cândida amante,
       Celebra hoje as bodas de diamante,
       Quase cem anos de exisncia honesta.
       Um bom diamante, sócios, é carvão.
       Ide buscar o coração do João
       E fazei dele o símbolo da festa.

Mal chegou a Lisboa o sonetito, encontrou no Dr. Nuno Simões carinhoso acolhimento. Depois de o ler na folha única, não se conteve o ilustre publcista. Comunicou o seu entusiasmo à Associação dos Bombeiros.
Isto de críticos... Se todos pensassem o mes­mo, a respeito de qualquer obra, tombava o mundo para uma banda, correria o risco de se perder na imensidade.
Todos os conselhos ouvirás e o teu não dei­xarás - reza o prolóquio. Todas as críticas ouvirás e a tua não deixarás - digo eu antes e depois de publicar os meus escritos. Sei ou suponho que sei até que ponto merecem ser publicados.

 João de Araújo Correia in Revista do Centenário da AHBV do Peso da Régua, de 1980 

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