segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Como a abelha





João de Araújo Correia (1899 – 1985) é um verdadeiro clássico moderno. Escritor pessoalíssimo, pelo estilo, pela visão desenfastiada do mundo, pela soberana indiferença com que cruzou escolas e movimentos literários, de que tomou conhecimento mas de que não fez alimento seu, o grande contista da Régua usou das suas andanças de João Semana militante para melhor ir conhecendo as terras e as gentes do Douro, que tão impressivamente fixou, depois, na sua ficção curta e nas suas crónicas disertas e de uma rara frontalidade.
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João de Araújo Correia fez isso mesmo: manteve-se dentro dos seus limites – a região do Douro – para nos poder dar o homem universal. “Preferi a rudeza da aldeia à delicadeza da cidade. Fiz-me aldeão. Meti-me no buraco onde nasci como quem pratica a proeza da sua felicidade”. Simplesmente – e a sua obra di-lo, por si – desse buraco onde se meteu, vê-se o mundo todo. 
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De resto, ninguém foi tão pouco provinciano como Régio ou João de Araújo Correia, ambos gente do Norte, e ninguém o foi tanto como alguns lisboetas contentes por serem da “grande urbe” de Lisboa. O provincianismo (que Pessoa denunciou em tantos que via, todos os dias, passearem-se pelas ruas da capital...) reside na cabeça e não na geografia. “Apesar de nascido na província”, observa o grande contista de Folhas de Xisto e de Montes Pintados, “e de não ter emigrado para os grandes centros, Porto ou Lisboa, muito me repugna o espírito provinciano. Penso que nasci avesso a esse espírito e que manterei essa aversão até o último sopro”. E acrescenta, com ironia certeira, uma farpa que Pessoa subscreveria: “Não é privativo da província o espírito provinciano. Mais vezes o tenho visto alerta na cidade do que nos arredores do meu eremitério. [...] Às vezes é mais virulento e mais violento em meio grande do que em meio pequeno”. Nas suas deambulações ocasionais pela capital, Lelito, o personagem central do romance de Régio A Velha Casa, goza à sucapa com a superficialidade e o provincianismo profundo de alguns intelectuais contentes, que se agitam pelos cafés lisboetas...
Muitas vezes, para se fugir à superficialidade e ao ruído esterilizante das grandes cidades, há que inventar, dentro destas, uma “província”, em que se refugia quem não é provinciano, para ali poder meditar e trabalhar.
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Em resposta a um questionário de Cruz Malpique, Araújo Correia rende homenagem às gentes do povo duriense, nestes termos comoventes:
“Tive a dita de lidar a tempo com gente iletrada minha conterrânea. Essa boa gente, que não conhecia uma letra do tamanho de uma casa, expressava-se melhor do que o melhor jornalista ou o melhor escritor dos nossos dias. Era sábia a seu modo. Possuía cultura oral. Tinha sintaxe infalível. Contava uma história com amenidade, simplicidade e relevo. Foi minha mestra e mestra de Camilo, criado como eu em Trás-os-Montes.”
É também com amenidade, simplicidade e relevo que João de Araújo Correia nos enfeitiça com aquilo a que gostava de chamar as suas “miniaturas”: contos e crónicas, que ficarão como clássicos da literatura regional, isto é, universal.

Eugénio Lisboa in  “Letras ComVida”, nº2 , 2º semestre de 2010

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